Este conteúdo foi originalmente publicado no Boletim – 363 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em fevereiro de 2023, e é fruto de parceria entre LAUT e IBCCRIM para publicação de textos bimestrais com conteúdo aberto. Serão abordados temas atuais e de relevância em Direito Penal, Direito Processual Penal, Criminologia e Direitos Humanos, bem como jurisprudência sobre esses assuntos.
Resumo: Por que podemos pensar nas práticas de responsabilização, dos cidadãos comuns e especialmente de agentes políticos, não como um conflito com a garantia de estabilidade democrática, mas, pelo contrário, como uma manifestação de profundo imbricamento entre democracia, igualdade e responsabilidade? Para responder essa questão, este texto apresenta o conceito de responsabilidade como um operador que explicita e concretiza vínculos jurídicos. A partir de uma concepção de democracia que ressalta seu fundamento igualitário, são articulados dois argumentos que especificam como a responsabilidade jurídica é constitutiva de uma ordem democrática.
Palavras-chave: Responsabilidade jurídica; Responsabilidade política; Democracia; Igualdade; Teorias da democracia.
Abstract: Ordinary citizens and political agents in special must be subject to responsibilities, and this requirement is not in conflict with the guarantee of democratic stability, but, on the contrary, is a demonstration of the deep imbrication between democracy, equality, and responsibility. Arguing for this position, this paper presents the concept of responsibility as an operator that makes legal bonds explicit and concrete. From a concept of democracy that emphasizes its egalitarian foundation, two arguments are articulated that specify how legal responsibility is constitutive of a democratic order.
Keywords: Legal responsibility; Political responsibility; Democracy; Equality; Theories of democracy.
- Introdução
“Sem anistia!”, gritou espontaneamente a multidão que compareceu à posse para o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto ele fazia o segundo discurso do dia, para o público. Em discurso anterior, para o Congresso Nacional, o presidente já anunciava:
Não carregamos nenhum ânimo de revanche contra os que tentaram subjugar a Nação a seus desígnios pessoais e ideológicos, mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal. O mandato que recebemos, frente a adversários inspirados no fascismo, será defendido com os poderes que a Constituição confere à democracia (BRASIL, 2023).
Logo após a posse, algumas análises políticas apressaram-se em apontar o que viam como possível “caça às bruxas” (GIELOW, 2023), uma perseguição ao movimento político que sustentou o mandato presidencial anterior. Outras análises, de caráter menos conjuntural e mais conceitual, apontaram a existência de uma suposta contraposição entre a justiça, expressa na ideia de “primado da lei”, e a exigência, que seria ínsita à própria estabilidade democrática, de que não haja perseguição de projetos políticos derrotados na urna: “Para que os perdedores aceitem mansamente a derrota, devem estar convencidos de que não serão perseguidos pelos vencedores e de que seus projetos poderão ser retomados numa eventual volta ao poder” (SCHWARTSMAN, 2023).
Pretendo questionar essa contraposição, argumentando que não há conflito entre democracia e justiça, e desdobrando o que de conceitualmente interessante existe na ideia presente no discurso presidencial de que há “poderes que a Constituição confere à democracia”. Aqui estamos no terreno já muito explorado da reflexão sobre estado de direito e governo democrático, mas minha intenção é nele ingressar para nele tratar de um conceito ainda pouco referido nesses termos: responsabilidade. Por que podemos pensar nas exigências de responsabilização, de cidadãos comuns e especialmente de agentes políticos, não como um conflito com a garantia de estabilidade democrática, mas, pelo contrário, como uma manifestação de seu profundo imbricamento com a própria democracia?