As transformações do “Mundo Do Crime” na Amazônia Paraense

Pesquisadora observa mudanças das dinâmicas criminais vividas no município de Igarapé-Miri a partir da vinculação de jovens a atividades ilegais e da destituição de seus status sociais por meio de suas características raciais e socioeconômicas

As transformações do “Mundo Do Crime” na Amazônia Paraense

Este conteúdo foi originalmente publicado no Boletim – 378 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em maio de 2024, e é fruto de parceria entre LAUT e IBCCRIM para publicação de textos bimestrais com conteúdo aberto. Serão abordados temas atuais e de relevância em Direito Penal, Direito Processual Penal, Criminologia e Direitos Humanos, bem como jurisprudência sobre esses assuntos. 

Resumo: O artigo examina as transformações ocorridas no “mundo do crime” na região do Baixo Tocantins/Pará, a partir da análise das mudanças das dinâmicas criminais vividas em um bairro negro no município de Igarapé-Miri. Para tanto, utiliza dados coletados durante uma pesquisa de iniciação científica e de mestrado, a qual identificou que, nos anos iniciais dos anos 2000, o bairro foi caracterizado por um alto número de homicídios, passando em seguida a ser marcado pela entrada de facções atuando em seu território e mais recentemente pela formação de um comércio ilegal de drogas. Da análise do material, concluímos que as dinâmicas criminais se modificaram na região e no bairro a partir da vinculação de jovens à atividades ilegais e através da destituição de seus status sociais por meio da conjugação de suas características raciais e socioeconômicas.

Palavras-chave: Mercados ilegais; Dinâmicas criminais; Raça.

Abstract: This article examines the transformations that have taken place in crime in the Baixo Tocantins/Pará region, based on an analysis of the changes in criminal dynamics experienced in a black neighborhood in the municipality of Igarapé-Miri. To this end, it uses data collected during an undergraduate and master’s research project, which identified that, in the early 2000s, the neighborhood was characterized by a high number of homicides, then became marked by the entry factions operating in its territory and, more recently, by the formation of an illegal drug trade. From the analysis of the material, we conclude that criminal dynamics have changed in the region and in the neighborhood because of young people being linked to illegal activities and their social status being stripped away through the combination of their racial and socioeconomic characteristics.

Keywords: Illegal markets; Criminal dynamics; Race.

———————————————————————————-

O presente trabalho é fruto de uma agenda de pesquisa sobre violência e criminalidade na Amazônia Paraense e utiliza informações coletadas em uma pesquisa de iniciação científica e de mestrado desenvolvida no município de Igarapé-Miri, na região do Baixo Tocantins no Pará, voltada a analisar a trajetória de uma família negra de classe popular, fundadora de um bairro conhecido como “África”, em especial sobre as suas gerações mais recentes, marcadas pelo envolvimento com atividades ilícitas e pelo intenso contato com instituições da justiça criminal e da segurança pública. 

A família que deu origem ao bairro e que foi foco de análise da dissertação de mestrado — os Santos — é uma família de descendente de escravizados da região e carrega consigo uma série de marcas que a caracterizam desde suas gerações passadas até as atuais: dos trabalhos em engenhos e seringais às dificuldades enfrentadas para se movimentar no interior das novas estruturas sociais emergentes, passando em sua mais recente geração a um intenso contato com as instituições do sistema de justiça criminal. A história da família possibilitou-me pensar como o racismo reaparece sob novas formas após mudanças sociais significativas e sobre como impacta fortemente a trajetória de seus descendentes. 

Embora a pesquisa estivesse originalmente concentrada na análise transgeracional das três últimas gerações da família, a situação dos componentes da geração mais nova despertou-me atenção durante o campo, especialmente porque parte deles, quase todos homens, encontrava-se morta e outra parcela significativa participava ativamente do mercado da venda de droga e integrava o Comando Vermelho, uma das organizações criminosas que na última década adentrou e consolidou sua atuação no território amazônico. 

Da análise do material coletado, composto majoritariamente por entrevistas realizadas com moradores e familiares de vítimas e de pessoas com envolvimento em atividades ilícitas, identifiquei que o bairro viveu uma série de transformações em suas dinâmicas criminais, sobretudo em três momentos específicos: i) no contexto do alto número de homicídios que acometeu o bairro entre 1990 e os anos iniciais de 2000; ii) na entrada de facções criminosas atuando no bairro a partir de 2010; iii) e mais recentemente, na estruturação de um comércio ilegal de drogas. 

As transformações das dinâmicas criminais citadas acima demarcam, ao meu ver, não apenas uma mudança nos mercados ilegais — compreendido aqui como um tipo de mercado informal sob o qual recai o peso diferencial da criminalização e um tratamento social e jurídico distinto de outras práticas ilícitas socialmente toleradas (Misse, 2007) — mas igualmente modificações impostas pela expansão do “mundo do crime” em periferias e favelas no Brasil, sobretudo entre jovens. A noção de “mundo do crime” é mobilizada aqui na acepção trabalhada por Feltran (2011) e Amorim e Feltran (2023), que a compreendem não apenas como uma categoria nativa utilizada para dar sentido às relações e práticas estabelecidas na dita criminalidade comum, mas antes como um conjunto de códigos e sociabilidades que se estabelecem localmente em torno dos negócios ilícitos e que tem se apresentado para jovens moradores de periferias como uma alternativa de mobilidade social. 

Nessa esteira, parto da hipótese que as mudanças identificadas nas dinâmicas criminais do bairro ocorrem não apenas a partir das transformações exógenas dos mercados informais, mas principalmente a partir da vinculação de jovens a atividades ilegais, através da destituição de seus status sociais por meio da conjugação de suas características raciais e socioeconômicas.

 

Leia o artigo na íntegra no Boletim do IBCCRIM.