O que as políticas autoritárias latino-americanas têm em comum?

O fortalecimento de práticas antidemocráticas e a atualização dos mecanismos de fragilização das instituições criam um quadro complexo e delicado na região

O que as políticas autoritárias latino-americanas têm em comum?

Publicado originalmente no site Aquí Mando Yo!, este conteúdo é parte de um projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. A iniciativa é coordenada pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: Revista Piauí (Brasil), El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela) e La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados em aquimandoyo.dromomania.com.

A onda de declínio democrático que assolou o mundo nos últimos anos teve na América Latina um lugar de destaque. Assim como outros países da Europa, da Ásia e da América do Norte, líderes autoritários se elegeram ou foram reeleitos no continente latino-americano nos últimos anos. O fortalecimento de práticas antidemocráticas historicamente consolidadas, bem como a atualização dos mecanismos de fragilização das instituições, criam um quadro complexo e delicado na região. 

A observação das realidades locais indica que os riscos à liberdade e à democracia se colocam de diferentes maneiras e atingem diversas áreas da vida social. A situação exige um olhar que seja capaz de compreender os entrecruzamentos e relações entre esses distintos mecanismos, bem como registrem suas operações em diferentes dimensões (formal ou informal, por exemplo). 

A Dromómanos elaborou, em parceria com o LAUT, uma Agenda de Emergência que registrou as  principais ações e omissões de sete governos federais latino-americanos (Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Nicarágua, México e Venezuela) que colocaram as democracias locais em risco no período de 2020-2021. 

Identificamos cinco principais eixos de atuação dessas políticas: concentração do poder, covid-19, militarização, direitos humanos e informação. O levantamento nos ajuda a identificar algumas estratégias comuns empregadas dentro dessas cinco áreas para entender de que forma o declínio democrático se traduz em políticas concretas, o que ajuda a dimensionar o tamanho do desafio que temos pela frente.

Chamam a atenção as diversas tentativas de redução ou aparelhamento de órgãos de controle estatais, como as Procuradorias Gerais da União e as instituições responsáveis por fiscalizar gastos públicos: foi o que aconteceu ao menos no México, no Brasil, na Nicarágua e em El Salvador. Tal processo se entrecruza com um esforço coordenado de diminuição da transparência dos atos públicos e com práticas históricas de corrupção na região. Tudo isso compõe um quadro de aumento na centralização do poder nas mãos do poder executivo e de seus aliados próximos. 

A situação se agrava ao identificarmos que, combinada com a crescente centralização de poder, os governos também empreenderam esforços para perseguir organizações da sociedade civil e pessoas que assumiram posturas críticas em relação às suas administrações. Em todos os países, ONGs, acadêmicos, jornalistas e integrantes de movimentos sociais foram intimidados pelo poder público. Os mecanismos de perseguição vão desde a realização de violentas falas públicas contra investigações jornalísticas ou ONGs até condenações criminais de opositores políticos, passando por investigações de professores ou jornalistas e pela decretação de leis que sufocam financeiramente as organizações do terceiro setor. 

A ação policial e militar tem um papel chave em tais persecuções. Em diversos países, como no Chile, na Colômbia, na Venezuela e na Nicarágua, protestos foram duramente reprimidos pela polícia, resultando em prisões, feridos e até mortos. Foram comuns, também relatos de tortura ou tratamento desumano em dependências prisionais e policiais. Em paralelo, vários governos ampliaram as competências das Forças Armadas, que passaram a ser responsáveis por questões que deveriam ser tratadas por políticas sociais, como migração e direitos indígenas. Além disso, os recursos a elas destinados também foram incrementados, seja por maiores repasses para investimentos tecnológicos seja pelo aumento dos soldos.  Em países com um passado recente marcado por ditaduras, guerras civis e partigos hegemônicos, onde as forças de segurança do Estado tiveram um papel protagonista na repressão, os novos processos de militarização são vistos com desconfiança e são comuns as narraticas que os associam com uma “regressão” histórica.

Na pandemia, as ações dos governos analisados também chamaram atenção. Em alguns casos, como no do Chile e de El Salvador, a emergência sanitária foi utilizada como desculpa para aumentar o nível da perseguição e repressão a críticos. Em outros, como no Brasil e na Nicarágua, os governos atuaram com negligência em relação à gravidade da doença, de modo a negar a emergência sanitária e ativamente instigar a desconfiança da população na ciência e nas instituições. Em todos os casos, houve episódios de desrespeito aos direitos fundamentais. 

Como reações às debilidades dos sistemas políticos, foram iniciados, em alguns casos, procedimentos internacionais de responsabilização de governos. Constatados o impedimento ou esgotamento das vias ordinárias de julgamento nos países, órgãos como o Tribunal Penal Internacional, o Tribunal Permanente dos Povos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos foram acionados. Além disso, órgãos consultivos também acenderam alertas, como relatorias especiais da ONU.

Se é certo que as trajetórias autoritárias apresentam traços comuns, também o é que guardam especificidades e graus diferentes. Na Nicarágua e na Venezuela, por exemplo, os processos de autocratização se encontram em estágios mais avançados. Já houve, por exemplo, intervenções diretas ao poder judiciário e restrições vultosas aos processos eleitorais, em benefício dos incumbentes de então.

 No Chile, por outro lado, a esquerda conseguiu vitória histórica com a eleição de Gabriel Boric em março de 2022, o que aliviou preocupações de maior declínio democrático. Além disso, ainda no final de 2020, a população aprovou a mudança da constituição – então datada de 1980, quando da ditadura da junta militar, presidida por Pinochet. 

No México, André López Obrador e seu partido, Morena, seguem ganhando as eleições frente a uma oposição enfraquecida rumo ao final de seu mandato de seis anos em 2024. A Colômbia elegeu pela primeira vez em sua história um governo de esquerda, que chega ao poder em um contexto de alta polarização. Brasil, por sua vez, tem eleições marcadas para outubro, e cenários que opõem o atual presidente ao ex-presidente Lula (esquerda) são os mais prováveis. Em El Salvador, Nayib Bukele segue aproveitando altos índices de popularidade e há vários indícios de que ele está preparando o terreno para uma reeleição, apesar da proibição da constituição salvadorenha para tanto.

A despeito das diferenças nacionais nos processos políticos, é certo que, no âmbito internacional, as inclinações de cada país fazem a diferença. Isso porque os problemas e desafios enfrentados vão além dos limites geográficos de cada país e exigem respostas criativas e estratégicas de longo prazo. Somente por meio da reflexão e da ação conjuntas é que poderemos responder à altura do maior desafio que nos está colocado: a sobrevivência da democracia.