Em um processo criminal datado do Século 19, em São Paulo, encontramos a história de Ambrosina, mulher negra, escravizada, analfabeta, ama de leite e mãe de Benedito. Ambrosina, ao ser acusada por negligência na morte do filho de seu senhor – um bebê de apenas dois meses -, defendeu sua inocência argumentando que só amamentava o seu filho a noite, para que não faltasse leite durante o dia para amamentar a criança de seu senhor. Esse exemplo, ainda que de séculos passados, escancara a realidade das diferenças sociais que atravessam as infâncias no Brasil, sendo marcadas pela raça e impactando o acesso e garantia de direitos básicos. As condições de precarização e vulneração socioeconômicas impostas sob as trajetórias de mães negras impactam diretamente na forma com que seus filhos experimentarão a infância. Deste modo, é possível perceber que mesmo histórias tão distantes, como as de Ambrosina e Benedito, no século 19, se conectam através da retirada precoce da vida e infância de casos como o do menino Miguel, de 5 anos, que em 2020 caiu do 9º andar do prédio em que sua mãe trabalhava como diarista, logo após ser deixado pela patroa sozinho no elevador. Tanto Miguel quanto Benedito tiveram suas vidas atravessadas pela desumanização de seus corpos e pela ausência de políticas públicas capazes de garantir o acesso a direitos básicos.
O conceito de Necropolítica, apresentado pelo filósofo Achille Mbembe, em seu livro “Política da Inimizade”, demonstra que o Estado, de forma intencional, cria mecanismos políticos para produzir as mortes – diretas ou indiretas -, daqueles corpos definidos como inimigos do Estado. Nesta linha, a necroinfância pode ser definida como “o conjunto de práticas, técnicas e dispositivos que não permitem que as crianças negras gozem a infância”.
Apesar da morte ser o caminho natural da vida, na trajetória dos corpos negros infantis ela é politicamente estruturada de forma a materializa-se como um destino precoce. Antes de existir, uma criança negra já é um ser politicamente destinado à morte. A morte física e até mesmo simbólica desses corpos se apresenta a partir das ações violentas e da ausência estatal na elaboração de políticas públicas em seus territórios – por meio da negação de direitos básicos como saúde, alimentação, moradia, saneamento básico e educação.