Por entre fissuras selvagens

Atravessado por alegorias amazônicas e criaturas reptilianas, romance ilumina processos históricos

Por entre fissuras selvagens

Preocupado em resgatar o valor estruturante dos mitos e dos ritos, Claude Lévi-Strauss refuta a premissa que os despreza como acidentais ou casuais em relação ao conhecimento humano acumulado. Para o antropólogo francês, antes da ciência moderna e de sua métrica de validação, as práticas de observação, experimentação e reflexão informavam as comunidades. Marco nas ciências sociais, o conceito de bricolage para Lévi-Strauss é esse fazer científico “primeiro” (designação preferida por ele, em vez de “primitivo”).

Lévi-Strauss contrasta o labor do bricoleur ao de um engenheiro. O engenheiro é refém de suas matérias-primas e de um ferramental preconcebido. O bricoleur executa tarefas com “um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentam para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores” (Lévi-Strauss, O pensamento selvagem).

Lembrei-me do antropólogo francês ao ler O réptil melancólico, romance de estreia de Fábio Horácio-Castro (heterônimo de Fábio Fonseca de Castro, professor na Universidade Federal do Pará). Como uma bricolagem que conecta o conhecido com o incógnito que não pode ser aprendido de forma usual, seu posicionamento de elementos de forma entrelaçada revela novos significados. Ao contrário de um engenheiro cujo projeto tem começo, meio e fim, e que usa matérias-primas e ferramentas com racionalidade utilitarista, a narrativa de Horácio-Castro percorre caminhos imprevistos, que mostram acasos e em que se apresentam desvios. Sua escrita não domesticada brinca conosco, leitores, mudando a narração e os cenários, retirando aspas, pontos e vírgulas para costurar diálogos ficcionais com pensamentos. Faz nos movermos por rastros entre fissuras, como seus répteis. Como literatura que arrisca, teve seus acertos reconhecidos pelo Prêmio Sesc de Literatura 2021 na categoria romance.

Leia a resenha na íntegra na Revista Quatro Cinco Um.