“[O] que causa maior pavor não é você matar a pessoa. É você fazer ela desaparecer. O destino fica incerto. […] quando você desaparece — isso é ensinamento estrangeiro — você causa um impacto muito mais violento no grupo.” Esse trecho faz parte do depoimento do tenente-coronel reformado Paulo Malhães à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014. Meses depois, ele depôs na Comissão Nacional da Verdade (CNV) e deu detalhes de como funcionava a Casa da Morte em Petrópolis, centro de sevícias e homicídios durante a ditadura. A um jornal, ele assumiu ter participado do desaparecimento do cadáver do deputado federal Rubens Paiva. Agente do Centro de Informações do Exército, Malhães declarou à CNV: “Eu cumpri o meu dever. Não me arrependo”. Ele foi encontrado morto um mês depois do seu depoimento, com suspeitas de queima de arquivo.
Trechos como o depoimento desse torturador e assassino confesso compõem o livro de Fábio Luís Franco, que se vale da filosofia política, da história, da psicanálise e da antropologia forense para pensar o desaparecimento de corpos no Brasil como uma das técnicas perversas de o poder político se afirmar. Franco revisa instituições, pessoas, saberes e práticas e forja a noção de “dispositivo de necrogovernamentalidade”, que conjuga os conceitos de “necropolítica”, de Achille Mbembe, e de “governamentalidade”, de Michel Foucault. Seu argumento é que o governo dos vivos passa pelo governo dos mortos.
A obra concentra-se no regime militar brasileiro, mas não se restringe a ele. Finalizado durante a Covid-19, pandemia que reforçou as desigualdades no país, o livro de Franco produz uma sensação vertiginosa sobre nossos tempos: se a ditadura ficou no passado, parte de seu entulho permanece. Enquanto nela os mortos foram desrealizados, na atual gestão federal o que se desrealiza é a especificidade da morte, tornando-a uma fatalidade sem responsáveis. Ao afirmar que as mortes de Covid se devem à própria dinâmica da pandemia, o governo Bolsonaro quer se desresponsabilizar de sua desastrosa gestão sanitária.