O professor de literatura João Cezar de Castro Rocha começa seu livro Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico fazendo algo a que quase todos nos acostumamos nesses anos difíceis que passaram: reclamando. Estudioso da mais alta literatura, especialista em Machado de Assis e em Shakespeare, tendo na prateleira inúmeras obras-primas literárias carregadas de sensibilidade e poesia, com um novo Ignácio de Loyola Brandão para ler e um antigo García Márquez para reler, o professor lamenta ter passado anos enfronhado nas narrativas do zap bolsonarista, atento à obra de Olavo de Carvalho.
Como se não bastasse obcecar acadêmicos da ciência política e da história, da filosofia e da sociologia, da comunicação e do direito, dos estudos militares aos de gênero, esse bizarro movimento político chamado bolsonarismo precisava também capturar a atenção de um pesquisador das belas-letras? No livro, Castro Rocha logo nos convence de que sim. Afinal, o bolsonarismo é tão incomparável a outros movimentos políticos, tão absurdo e extremo, que virou lugar-comum reclamar dos excessos e da falta de sutileza do “roteirista do Brasil”. Os estudos sobre a realidade não bastam para compreender o que se passou neste país: é preciso apelar à literatura. É o que Castro Rocha fez ao longo desses quatro anos, em artigos e entrevistas, agora reunidos neste livro.
A obra mostra que o golpe que sofremos também é narrativo. Bolsonaro conquistou o poder porque conseguiu convencer suficientes milhões de brasileiros a acreditar numa história — aquilo que o autor chama de “dissonância cognitiva coletiva”, construída por uma “midiosfera extremista” que operava (e ainda opera) uma “máquina incansável de fatos alternativos”. Castro Rocha define a guerra cultural como uma “matriz de produção em série de narrativas polarizadoras cuja radicalização crescente engendra sem trégua inimigos imaginários, mantendo a militância em estado permanente de excitação”. O bolsonarismo gestou um “Brasil Paralelo de milhões de pessoas”, num certo sentido, uma criação literária, que, apesar de carecer de estilo, foi inegavelmente bem sucedida.