Rememorar um fenômeno é também recriá-lo: elaboram-se interpretações que aliam o passado ao presente e, com isso, esboçam possibilidades de futuro. O golpe de 1964 é da categoria de eventos que nunca passam completamente, assombrando mesmo depois de sessenta anos. Ele acopla diferentes temporalidades e, apesar dos importantes esforços para superá-lo, seu espectro perdura como uma ameaça ao projeto democrático.
O golpe interrompeu a história brasileira, inscrevendo o autoritarismo, a violação de direitos e a repressão na sociedade e nas instituições. Essa experiência autoritária não foi inédita -— nossa história está marcada por elas. Esse golpe e a ditadura, porém, foram hábeis em falsear a história por meio do legalismo. Os juristas do golpe produziram a certidão de nascimento no Ato Institucional nº 1 (AI-1), fundamentando juridicamente a supressão da ordem democrática como uma “revolução”. Com isso, poderiam cercear os poderes, tendo a autonomeada “revolução” a função de “drenar o bolsão comunista”. A metáfora infecta foi a tônica da construção de um mundo em que o descumprimento constitucional era apresentado como seu oposto.
Depois do AI-1, criado para ser único, houve mais dezesseis, tornando permanente o que se apresentava como temporário. A gestão das temporalidades é marca do golpe. A insistência em arquitetar algo novo, com o objetivo de se afastar de potenciais pressões políticas, foi uma tentativa de criar uma história forjada artificialmente, em que tudo o que escapa da invenção deve ser destruído. Daí que a ditadura tenha tido repressões políticas, artísticas e morais. As ditaduras não convivem com a diversidade, sobretudo aquelas que mostram o feio e o imperfeito. Nessa toada, a invocação do arremedo de legalidade foi instrumento de acobertamento das ações mais ilegais e imorais.