Em legítima defesa

Filósofa francesa desenvolve genealogia do poder a partir da ideia de que cidadãos excluídos socialmente não têm o direito de se defender

Em legítima defesa

Cerca de duzentos anos separam Millet de La Girardière, Rodney King e Trayvon Martin, no entanto, existe um traço comum em suas histórias: os três sujeitos tiveram sua capacidade de se defender diminuída e deslegitimada até o ponto em que a mera presença de seus corpos foi considerada uma ameaça pelas sociedades em que viveram. Eram três homens negros em sociedades governadas pela diáspora europeia colonizadora.

No caso de Girardière, a última manifestação da supressão de sua capacidade de autodefesa se deu no momento de sua execução por meio de uma jaula de suplício, na qual foi colocado em pé sobre uma lâmina que lhe infligia cortes e ferimentos sempre que fraquejava e em frente a alimentos que não poderia tocar até o derradeiro momento de sua morte. A história de Rodney King, por sua vez, já é de conhecimento amplo: em 1991, em alta velocidade, foi interceptado por três viaturas e um helicóptero da polícia; inicialmente recusou-se a sair do veículo, mas, sob a ameaça de uma arma de fogo, saiu e deitou-se no chão. Foi aí que se deu início a uma sessão de agressões com arma de eletrochoque e cassetetes pelos policiais que o deixaram inconsciente e com diversas fraturas à espera de uma ambulância. O evento foi gravado e circulou o mundo, mas no julgamento dos quatro policiais pelo uso excessivo da força, de agressores eles foram considerados vítimas, pois teriam sido ‘ameaçados’ por King.

Martin sequer teve a chance de sobreviver para acompanhar o julgamento de seus agressores em 2013. Era apenas um adolescente de capuz que saiu de uma loja segurando um refrigerante e falando ao telefone com a namorada, e foi executado por um morador que o seguiu por considerá-lo suspeito. Em seu julgamento, o assassino também foi considerado a vítima, ao ter sua atitude justificada por um ‘medo razoável’.

É com a história dessas três pessoas que Elsa Dorlin inicia e encerra o seu livro Autodefesa: uma filosofia da violência. Se tivesse sido concluído em 2020, a obra poderia incluir os casos de George Floyd, Rayshard Brooks, Daniel Prude, Breonna Taylor, Evaldo dos Santos Rosa, David Santos, os quase trinta mortos na ação na Jacarezinho, Kathlen Romeu e tantos outros. Só pela atualidade e urgência do tema, a obra já vale a leitura.

Leia a resenha na íntegra na revista Quatro Cinco Um.