Autoritarismo negacionista: governo Bolsonaro antes e depois da pandemia
Quando ele tomou posse, não foi surpresa sua política de segurança baseada na violência policial e ampliação da posse e porte de armas para a população civil; a desconstrução de seu legado seguirá sendo um desafio para toda uma geração
Publicado originalmente no jornal Washington Post, este conteúdo é parte de um projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. A iniciativa é coordenada pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: Revista Piauí (Brasil), El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela) e La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados em aquimandoyo.dromomania.com.
A eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, em 2018, encerrou o maior ciclo de estabilidade democrática da história do país, que havia começado com a Constituição de 1988. Bolsonaro, que se opõe ao aborto legal e é um defensor da ditadura militar, contou com o apoio de grupos evangélicos atores poderosos do agronegócio e representantes do mercado financeiro. Ao assumir a presidência, em 2019, seu governo confirmou sua identidade de extrema direita.
Neste ano, no dia 2 de outubro, o Brasil voltará a eleger seu presidente. Bolsonaro planeja a reeleição e enfrentará o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas mesmo se Bolsonaro for derrotado, a desconstrução de seu legado seguirá sendo um desafio para toda uma geração.
Quando ele tomou posse, não foi surpresa sua política de segurança baseada na violência policial e ampliação da posse e porte de armas para a população civil. Tampouco os ataques a minoriais como grupos LGBT+. As estratégias que compõem a agenda autoritária do governo, como minar a competência e credibilidade dos demais poderes da República, são muitas. Mas uma delas ganhou ressonância especial depois de quase dois anos de pandemia e mais de 656.000 mortos: o negacionismo.
Investir na fabricação da dúvida e da negação para desestabilizar o consenso democrático não é prática nova na política. No livro “Merchants of Doubt”, Naomi Oreskes e Erik Conway, mostram como a indústria norte-americana de tabaco foi precursora desse método na década de 1980. Bolsonaro e seus apoiadores têm crescido ao desvirtuar o papel da ciência – não só das “ciências duras”, mas das ciências sociais e da historiografia – para gerar uma falta de confiança generalizada, inclusive em relação às instituições democráticas.
Desde seu primeito dia no governo, Bolsonaro reavivou as ideias autoritárias que há décadas estavam latentes no Brasil. Seu governo celebrou durante três anos o dia do golpe de Estado que inaugurou a ditadura militar brasileira (1964-85) e o próprio presidente e seus ministros criticaram o trabalho da Comissão Nacional da Verdade.
Dessa forma, negam não só a história recente, mas também os problemas de longa data do país. Sérgio Camargo, presidente até março de 2022 da Fundação Palmares, uma instituição pública de combate a discriminação racial, negou permanetemente a existência do racismo e já disse que os escravos tinham uma vida privilegiada. Bolsonaro já ignorou a discriminação religiosa sofrida por praticantes de religiões africanas ao denunciar suposta “cristofobia” sofrida por cristãos, que estão longe de compor alguma minoria religiosa.
O presidente também mostrou sua reverência ao negacionismo climático ao exonerar o presidente e coordenador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos principais centros de monitoramento do desmatamento no país, após a publicação de dados alarmantes sobre o ritmo acelerado do desmatamento na Amazônia em 2019. Para desmascarar a ‘psicose ambientalista‘, o Ministério da Defesa liberou verbas para a aquisição de novo satélite para compilar novos dados e a Polícia Federal acusou o Inpe de gerar desinformação sobre o desmatamento no país.
Como um homem que se incomoda com os fatos, também não surpreende as incontáveis críticas e ataques à imprensa.Quatro dias após sua posse, por exemplo, Bolsonaro afirmou que “setores da mídia inventam mentiras 24h por dia”. Desde então, a imprensa é chamada por ele de ‘esgoto’, ‘lixo’, ‘jornalismo prostituído’.
A pandemia tem sido especialmente devastadora para os brasileiros. Desde janeiro do ano passado, o país superou a marca de mil mortes por milhão de habitantes em decorrência da covid. O Brasil é o segundo país latino-americano onde a doença foi mais letal, superado somente pelo Pedu.
Em março de 2020, Bolsonaro afirmou que o vírus não passava de uma “gripezinha”. Desde o início, recusou-se a decretar as medidas restritivas de circulação recomendadas pelas autoridades sanitárias, lançou uma campanha publicitária com o slogan “o Brasil não pode parar” e atacou os governadores que optaram por estabelecer regras de distanciamento social.
Bolsonaro também criticou abertamente a eficácia das vacinas, atrasou sua distribuição e é contrário a sua obrigatoriedade. Vetou o uso de máscaras em estabelecimentos prisionais e estabeleceu que salões de beleza seriam serviços essenciais durante a pandemia. Além disso, o governo federal mais de uma vez deixou de produzir dados sobre os impactos da doença, o que motivou veículos de imprensa a formarem um consórcio para acompanhar o número de contágios e mortes diárias em decorrência do vírus.
O presidente, o Ministério da Saúde e outros membros do governo federal, ao contrário, incentivam o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, como a hidroxicloroquina e a proxalutamida, no tratamento da doença. Em janeiro de 2022, o Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde apontou que, ao contrário de vacinas, a hidroxicloroquina teria demonstração de efetividade e segurança em estudos controlados e experimentais. Dez dias depois, uma Nota Técnica do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) colocou um serviço público à disposição daqueles que se sentirem discriminados por não tomarem a vacina.
Apesar desse esforço coordenado e da estratégia política do governo federal, cerca de 70% da população brasileira está totalmente imunizada. Isso por conta do Programa Nacional de Imunização, posto em marcha nos últimos três anos por milhares de profissionais em todo o país.
O acúmulo de atos autoritários por parte do Govero Federal tem encontrado resistência, inclusive na esfera burocrática. Mas a sua obra está viva e é profunda e corrosiva. Ainda que individualmente suas ações podem parecer descoordenadas e ambivalentes, no todo não há dúvidas: trata-se de estratégia para enfraquerer a institucionalidade democrática, como mapeado pela Agenda de Emergência do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT).
O processo eleitoral brasileiro apresenta um cenário de grande risco e incerteza. Bolsonaro intensificou seu discurso contra as urnas eletrônicas e já sinalizou que existe a possibilidade que ele não respeite uma eventual derrota. A possibilidade de uma ruptura democrática, com o apoio das Forças Armadas, já se percebe como real.
Também é preocupante a possibilidade de que Bolsonaro reverta a desvantagem que apresenta atualmente nas pesquisas eleitorais e seja reeleito. Bolsonaro não hesitará em utilizar uma âncora eleitoral para acelerar sua estratégia radical de desmonte do Estado brasileiro, com todas as graves consequências para o desenvolvimento social, político e econômico do país.