Na obra inaugural de sua tetralogia sobre as transformações das democracias contemporâneas, traduzida em boa hora para o público brasileiro, o historiador Pierre Rosanvallon joga nova luz sobre o debate que pinta o declínio democrático em um horizonte sombrio. Sua tarefa é desfazer o aparente paradoxo entre a disseminação global da democracia como forma de governo e a frustração popular com seus fracassos a partir da teorização da “contrademocracia”, que não se coloca como antônimo de democracia nem como fórmula de matriz liberal vertida à limitação ou ao controle de autoridades eleitas. A contrademocracia é compreendida como a outra face da democracia, complementar à dimensão puramente eleitoral e orientada por critérios diferentes de legitimidade.
Abordagens convencionais apresentam diagnósticos da “crise da representação” a partir das mazelas dos mecanismos eleitorais. Crescentes níveis de desconfiança seriam sintomas de tais patologias. Rosanvallon inverte a equação, afirmando a inevitabilidade da queda dos níveis de confiança diante da complexificação social, mas percebendo nisso um potencial democrático para a organização da desconfiança. Desse modo, a contrademocracia não tem sentido negativo, apontando para a construção de políticas públicas e institucionais a partir de uma política alternativa. O conceito democrático se expande a partir de uma articulação dual da soberania popular, incorporando uma nova dimensão ativa que compreende poderes não ancorados no voto popular.
As práticas contrademocráticas focalizam três ângulos da confiança como instituição invisível: a dimensão moral de ampliação qualitativa da legitimidade; a dimensão de cuidado do bem comum; e o papel temporal de projetar a natureza contínua dessa legitimidade. Daí surgem os três tipos de contrademocracia que estruturam o livro: os poderes de vigilância, as formas de impedimento e as provas de um julgamento. Se a face eleitoral é episódica e limitada no tempo, a face contrademocrática enriqueceria a democracia a partir de poderes indiretos que expressam a soberania de forma contínua pelo corpo social.