Em um belo ensaio de 2008, Heloisa Starling relê ficções brasileiras tecidas em torno do sertão para refletir sobre o republicanismo no Brasil. Com Euclydes da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, aborda as contradições da modernidade brasileira olhando para um dos seus aspectos cruciais — a produção da ordem republicana — na pena de homens que se dedicaram a confeccionar o real e o ficcional para o público leitor de uma sociedade que era altamente iletrada.
A ascensão de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República põe de um novo modo o problema do lugar do ficcional na produção da ordem política. Sua eleição em 2018 pode ser vista como um efeito do baralhamento do que, em seu Imagined Democracies, Yaron Ezrahi trabalhou como a linha que separa real de ficcional, racional de irracional. Em relação com ela a ciência e a política se autorizaram como instâncias de discursos racionais sobre o real, em contraste com a religião e as artes, que seriam instâncias por excelência de discursos irracionais ou ficcionais. Por um lado, aquela linha criou condições para a plausibilidade da ficção de que ciência e política discorrem sobre ordens que se encontram fora dos próprios discursos; por outro, foi propícia à plausibilidade da ficção de que nem as artes nem a religião produziriam ordem. Um discurso-pregação recente da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, eleita senadora pelo Distrito Federal, mostra, no entanto, quão ficcionalizada a realidade pode ser no mundo contemporâneo quando se trata de emprestar plausibilidade a uma fantasia.
No entreturnos da eleição presidencial de 2022, um vídeo da pastora Damares Alves em uma Assembleia de Deus goianiense capturou a atenção das mídias por veicular um relato ao mesmo tempo bizarro e repulsivo. Nele, vestindo uma camisa evocativa do pavilhão nacional com a inscrição “Ore pelo Brasil”, Damares afirma: “Desaparecem ainda no Brasil, irmão, entre 9 e 11 mil crianças por ano. Meu Deus. Para onde vão essas crianças?”. Ao que ela mesma responde: “Irmãos, eu fui para a Amazônia, e Bolsonaro falou: ‘Vamos para a fronteira, vamos fechar essa fronteira’. E fomos. Nós fomos para a Ilha do Marajó”.
Sob o “manto constitucional da liberdade religiosa” num dos centros da agromodernidade brasileira, a ex-ministra passa então a contar como crimes sexuais eram praticados contra crianças naquela fronteira aberta: “Marajó faz fronteira com o mundo: Guiana, Suriname, Guiana. Eu vou contar uma coisa para vocês, que agora eu posso falar”. Quais jogos entre ficção e realidade Damares proporá a essa audiência de “irmãos” ao justapor de um modo aparentemente desconexo dados que se pretendem estatísticos, imagens da comunidade imaginária da nação, o testemunho de ação presidencial quase heroica de ir até a fronteira para protegê-la?