Artigo publicado originalmente na seção ‘questões de política internacional’ da revista PIAUÍ.
Pelas lojas e repartições de Istambul é comum observar retratos de Mustafa Kemal Atatürk ou bandeirinhas com a sigla ATA, em referência ao fundador da moderna república da Turquia em 1923. Este ano, o partido popular republicano (CHP), criado por ele, disputou nas eleições presidenciais da Turquia um inédito segundo turno contra o partido da justiça e do desenvolvimento (AKP). Pelo CHP disputou Kemal Kılıçdaroğlu, o candidato “baunilha” — não é a primeira opção de ninguém, mas sua rejeição supostamente não é forte também. Pelo AKP, Recep Tayyip Erdoğan, o atual presidente e homem forte do país. Kılıçdaroğlu reuniu inicialmente uma coalizão de seis partidos com diferentes inclinações políticas — a chamada “mesa dos seis”, que engrossou para oito — contra Erdoğan, que já soma vinte anos no comando do Executivo.
O resultado oficial das eleições mostra que, no segundo turno, Erdoğan conquistou 52,18% dos votos, e seu opositor, 47,82%. Em comparação com o pleito de 2018, quando venceu no primeiro turno, Erdoğan perdeu 0,4 ponto percentual.
Kılıçdaroğlu, economista e servidor público aposentado, porém, não era uma escolha óbvia para disputar contra o atual governo. Em especial depois da desilusão no primeiro turno: Erdoğan somou 49,52% dos votos, enquanto Kılıçdaroğlu, 44,88% — e as pesquisas de opinião independentes o apontavam sempre na frente.
Os prefeitos de Ankara e Istambul, ambos do CHP, também eram cotados para a candidatura contra Erdogan. O último, Ekrem İmamoğlu, inclusive ganhou votação expressiva depois de uma batalha judicial contra o AKP. Em 2019, derrotou o candidato do AKP por 13 mil votos em Istambul e, mesmo depois de ter sua vitória cancelada por alegações de falta de lisura do pleito, conseguiu se reeleger por uma distância ainda maior: 80 mil votos a mais do que o oponente. Mesmo assim, não foi selecionado. Isso porque pende uma sentença de prisão contra ele na justiça – dizem as boas línguas, diretamente encomendada por Erdoğan – e a oposição temia ter sua candidatura melada. O crime? Ter chamado de “idiotas” os oficiais eleitorais que cancelaram sua eleição; a pena, dois anos de prisão e perda de direitos políticos.
Em comum com a Turquia de Erdogan, o Brasil viveu o enredo de incapacitar a oposição. Em 2018, o agora presidente Lula foi alijado da disputa por uma condenação que, três anos depois, foi anulada. À beira de ser preso, Lula deu um de seus discursos já nascidos clássicos, infinitamente reproduzidos na sequência nas bolhas petistas: “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera inteira.” A frase não era inédita em sua trajetória política — ao menos na campanha de 1989 ele também já a desfilara —, tampouco de sua autoria. Mas pegou.
Kılıçdaroğlu fez uso de fraseado similar, associando sua campanha à chegada da primavera no primeiro turno. A primavera aludia à volta do país aos trilhos econômicos — já que, sob Erdoğan, a inflação média anual estava acima dos 43%, chegando a mais de 80% no ano passado – e à democracia parlamentarista. Desde 2017, o país se transformara em um sistema presidencialista: já que Erdoğan não mais podia se reeleger como primeiro-ministro pelas regras existentes, conseguiu mudá-las via referendo constitucional. Em uma manobra ardilosamente inconstitucional, esse mesmo referendo viria a ser o fulcro de legitimação da candidatura de Erdogan a um terceiro mandato, em um país que só permite dois mandatos presidenciais.