Temporada 3 Vigilância, vigilantismo
e democracia
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Episódio 02

Vigilância em tempos de pandemia

Anna Venturini: Olá, bem-vindas e bem-vindos à terceira temporada do Revoar, o podcast do LAUT, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo. Eu sou a Anna Venturini.

Felipe de Paula:  Eu sou o Felipe de Paula.

Pedro Ansel: E eu sou o Pedro Ansel.

Anna Venturini: E este é o segundo episódio da terceira temporada do Revoar, dedicada à vigilância e ao vigilantismo. O tema do episódio de hoje é indispensável – e urgente, eu diria: a vigilância em tempos de pandemia.

Felipe de Paula: O novo coronavírus chegou ao Brasil no início de 2020 e fez com que o Estado tivesse que atuar muito rapidamente para formular e implementar políticas públicas de contenção de um vírus até então desconhecido pelo mundo.

Trecho da reportagem: “COVID-19. Veja as informações mais recentes do MS sobre o COVID-19”, do  Jornal O Globo [https://www.youtube.com/watch?v=v3DUnDZFFC0]

Anna Venturini: Essa situação exigiu do Estado respostas rápidas com base nas informações disponíveis naquele momento, tais como a recomendação de medidas de isolamento social, a importância do uso de máscaras e em alguns municípios, o bloqueio total – mais conhecido como lockdown.

Felipe de Paula: E, para formular, implementar e acompanhar os efeitos dessas políticas, entes governamentais e empresas privadas começaram a utilizar dados pessoais. De um lado, o uso de dados parecia central para a criação de políticas efetivas; de outro, surgiram controvérsias sobre sua coleta, uso, armazenamento e compartilhamento.
Para refletir com a gente sobre esse tema, convidamos dois especialistas: a Nathalie Fragoso, advogada e pesquisadora responsável por análises sobre o uso de dados pessoais no combate à pandemia; e o João Abreu, co-fundador da Impulso, uma organização sem fins lucrativos que trabalha com estados e municípios para aprimorar o uso de dados e tecnologia na área de saúde.

Anna Venturini: Antes de entrarmos no tema da pandemia e do uso de dados pessoais para contenção do vírus, precisamos dar um passo atrás e entender qual a importância do uso de dados na formulação de políticas públicas. É corrente a ideia de que regulação boa é a regulação informada, e cresce no mundo o mantra da regulação baseada em evidências, ou seja, a formulação de políticas desenhadas a partir de dados seguros e confiáveis. 

Felipe de Paula: E para que os agentes estatais possam tomar decisões fundamentadas, é essencial que isso seja feito com base em informações de alta qualidade usando dados disponíveis e capacidades analíticas. 

Anna Venturini: Por exemplo, para que o Estado possa decidir quais medicamentos deverão entrar ou não na lista de remédios distribuídos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, é preciso primeiro entender quais são as doenças que mais estão afetando a população. E isso pode ser feito com base nos registros médicos das unidades básicas e dos hospitais públicos. 

Felipe de Paula: E não basta só criar a política, Anna. Depois os agentes governamentais e a sociedade civil precisam de dados para poder monitorar a implementação das políticas e verificar se elas estão sendo efetivas para o propósito para o qual foram criadas. É assim que se detecta a necessidade de ajustes ou de outras alternativas mais eficazes e eficientes.
Na nossa conversa, o João Abreu falou um pouco sobre a importância dos dados na criação e no acompanhamento das políticas públicas. 

João Abreu: Acho que a gente ainda faz pouco uso disso no Brasil, a gente coleta bastante, às vezes as pessoas têm a impressão de fora que governo, aquela coisa de ficar anotando coisa no papel, que não está nada digitalizado, existem casos, existem anedotas, mas tem muita coisa que está sim digitalizada mas o uso inteligente desses dados ele é ainda muito pouco explorado. Então, para dar exemplos na área de saúde, né, que é onde a gente foca a nossa atuação, a gente tem, na verdade a maior parte dos municípios brasileiros têm o chamado prontuário eletrônico, então eu tenho informações ali sobre a saúde de cada indivíduo que é atendido pela cidade, né, usuário do SUS que são sete de cada dez brasileiros. Então, é realmente muita gente, e a gente consegue. Se a gente quiser, dá para você descobrir ali por uma determinada pessoa que entrou ali na clínica, na UBS, quando foi a última vez que ela esteve ali, quais foram os resultados dos últimos exames, em geral essas informações existem mas elas são muito pouco usadas para fins de gestão. Então, você até em geral consegue fazer um bom acompanhamento no nível individual, mas é muito raro que você tenha, por exemplo, o secretário de saúde falando “pô, esse bairro aqui está tendo um surto, um número de pessoas visitando a UBS, por exemplo, muito atípico, muito acima da série histórica. O que será que está acontecendo? Será que tem algum foco de uma doença territorial ali, algo do tipo?” Esse tipo de coisa é teoricamente possível, a gente tem grande parte dos dados necessários para usar, mas a gente não vê acontecendo muito. Mas revela que tem uma utilidade enorme, né? 

Anna Venturini: A Nathalie Fragoso, nossa segunda entrevistada, também falou da importância dos dados e trouxe o exemplo do Programa Bolsa Família, um programa de transferência de renda criado pelo governo federal em 2003.

Nathalie Fragoso: Porque os dados são muito importantes para a formulação de políticas públicas, né? Dados são importantes para conhecer um problema, para formular respostas a um determinado problema. Então, a visibilidade de um problema é condição para o endereçamento dele. Então, dados são importantes para formular boas políticas públicas, não há dúvida disso. Mas dados, sobretudo quando relacionados a uma pessoa identificada ou identificável, também podem tornar as pessoas mais vulneráveis. Informação é poder. Bolsa Família é um programa que depende de uma grande quantidade de dados,depende de uma grande quantidade de dados para ser formulado e depende de uma grande quantidade de dados para ser operacionalizado. Na seleção das beneficiárias, no monitoramento de condicionalidades…e todos os meses é publicada uma lista com o nome de todas as receptoras, né, as beneficiárias do Bolsa Família no Portal da Transparência. Uma lista georreferenciada. Isso faz parte das políticas de transparência do governo federal. Embora sejam só dados de nome, NIS, parte do NIS e o município, e o valor percebido…embora sejam só esses os dados, a gente já percebe que elas são alvejadas, como grupo, por uma série de atores maliciosos, por exemplo. 

Felipe de Paula: Como lembrou a Nathalie, a forma como o Estado cuida ou descuida dos nossos dados levanta alguns alertas. O cidadão sabe que tem seus dados coletados, e pra qual finalidade eles serão utilizados? Há segurança no seu uso e na sua guarda? Quais as garantias de que esses dados não serão utilizados para outros fins, ou para eventuais medidas discriminatórias? Há proteção a dados sensíveis como de saúde ou de orientação religiosa?

Anna Venturini: Agora vamos conectar isso com a pandemia e as medidas de contenção da covid-19. Daria para pensar em políticas públicas de combate ao coronavírus sem o uso de dados pessoais? 

Felipe de Paula: No caso da pandemia, uma série de fatores precisavam ser analisados por estados, municípios e outros atores envolvidos na criação de políticas de combate ao coronavírus e também no acompanhamento das medidas. 

João Abreu: E se quiserem um exemplo mais próximo de todos nós agora, infelizmente, é a pandemia. Se a gente tivesse, talvez, na própria China, no caso, muito rapidamente observado um aumento muito grande de pessoas com queixas de sintomas do que hoje a gente conhece como Covid lá atrás, talvez a gente tivesse conseguido isolar essas pessoas antes, né, conter a disseminação antes dela se tornar uma pandemia, por exemplo. Então acho que não tem momento mais fácil da história para explicar porquê dados importam para políticas públicas do que esse, né? Olha o que aconteceu quando a gente não usou tudo o que podia.

Anna Venturini: Em 2020, vimos que uma série de soluções tecnológicas surgiram para auxiliar no controle da pandemia e dos níveis de isolamento social. Governos de diversos países aderiram ao uso de tecnologias baseadas em dados de georreferenciamento, reconhecimento facial, informações de exames médicos, utilizando dados de suas populações na tentativa de conter a disseminação da covid-19.

Felipe de Paula: A implementação dessas tecnologias vem dividindo opiniões de especialistas no assunto, e o Pedro trouxe algumas informações sobre o caso brasileiro para a gente.

Pedro Ansel: Para acompanhar as medidas de isolamento social, alguns Estados e municípios firmaram parcerias com empresas privadas para usar dados de geolocalização das pessoas, um recurso que permite determinar de forma precisa o local de um dispositivo eletrônico, como nossos celulares. O governo de São Paulo e a prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo, firmaram parcerias com empresas de telefonia para obter essa informação.  Outros estados têm usado os dados da In Loco, uma empresa brasileira de segurança digital que está presente em cerca de 60 milhões de celulares por meio de aplicativos que usam sua tecnologia.
A parceria com os governos estaduais e municipais permite que a empresa disponibilize diariamente em seu site o índice de isolamento médio nacional e em cada estado do país. O objetivo  deste monitoramento é informar aos gestores públicos quais regiões das cidades ou do estado estão com menor ou maior taxa de adesão ao isolamento social, para que possam direcionar melhor suas políticas de saúde, conscientização e segurança. A quantidade de celulares vigiados pela empresa chamou a atenção das  autoridades mesmo antes da pandemia. Em agosto de 2018 a Comissão de Proteção de Dados Pessoais do  Ministério Público do Distrito Federal e Territórios chegou a instaurar um inquérito para apurar as atividades da In Loco. O Ministério Público questionou a empresa quanto ao número exato de pessoas monitoradas, quais e como os dados eram  obtidos. No entanto, no início de 2020, após 15 meses de investigação, o inquérito foi encerrado por entender que a coleta de dados efetuada pela empresa não viola a legislação, pois não permite a vinculação direta entre as informações coletadas e o titular dos dados pessoais.  

Anna Venturini: As parcerias de empresas privadas com estados e municípios são apenas um exemplo do uso de dados pessoais para a formulação de políticas e medidas de combate à pandemia.

Felipe de Paula: A realização de parcerias pelo poder público com entes privados não pode se dar de maneira desregrada, Ana. A legislação tem por objetivo garantir que a escolha foi transparente, que não haja ganhos escondidos por parte do parceiro, e que os interesses e direitos dos destinatários dos serviços sejam respeitados. Apesar de estarmos em uma situação grave e que demanda respostas rápidas, é preciso atenção para essas garantias. 

Anna Venturini: Como a Impulso auxiliou muitos governos que fizeram uso dessas tecnologias e informações, pedimos para o João nos contar mais detalhes sobre essas parcerias durante a pandemia.

João Abreu: Eu posso contar os casos que eu conheço, tá? Podem existir outros casos, e houve dois modelos: o modelo que na verdade não tem interação, que eu saiba esse foi o modelo do Google, ele disponibiliza num portal ali o índice de mobilidade do Google, você vai lá e consome como quiser esses dados, pode ser um gestor público decidindo se vai abrir ou fechar o restaurante, pode ser um cidadão comum, enfim, está lá, aberto, e não tem nenhuma parceria mais profunda. Teve também o caso da Inloco, que foi um dos que eu vi uma parceria de fato acontecendo, né? Então eles firmavam acordos de cooperação, sem transferência de recursos, nos casos que eu acompanhei, e tinham informações de índices de isolamento, que eles chamavam, daquela cidade. E nesse caso até, quando havia esse acordo de cooperação, até no nível bairro, então para você ter informação no nível bairro eles exigiam uma interação com o setor público e um acordo de cooperação firmado. E nós da Impulso, na verdade, fizemos o índice municipal ser aberto para o público. E até hoje ele está disponível online.
Então, se você quiser saber o índice de isolamento das pessoas que ficaram em casa em São Paulo, você pode ver. Mas se você quiser saber num bairro de São Paulo, você precisa ter firmado um acordo de cooperação com essa empresa, ou você é governo ou tinha muitos casos também de pesquisadores, da academia, firmando esse tipo de acordo. Mas nos casos que eu vi com o estado, não soube de nenhum que teve transferência de recurso, e todos foram nesse modelo: ou 100% aberto, ou tem que fazer um acordo de cooperação primeiro.

Anna Venturini: Vale lembrar que os dados não são utilizados apenas na área da saúde durante a pandemia.

Felipe de Paula: Bem lembrado, Anna. Antes mesmo da pandemia, secretarias de educação fizeram parcerias com empresas privadas com o objetivo de aliar ensino e tecnologia. Esse foi o caso da Secretaria de Educação de São Paulo, que em 2017 realizou parceria com a Microsoft para oferecer de maneira gratuita o pacote Office a alunos e professores da rede estadual de ensino. O uso desse serviço, no entanto, estava vinculado ao cadastro e criação pelo usuário de uma nova conta de e-mail na Microsoft. 

Anna Venturini: Em 2020, com a chegada da pandemia, novas parcerias entre a rede pública de ensino e plataformas de aula remota foram estabelecidas. O projeto “Educação vigiada” investigou a relação entre os processos educacionais das instituições públicas de ensino e os serviços “gratuitos” ofertados por empresas como Google, Apple, Amazon e Microsoft. Descobriu que 65% das instituições entregaram dados sensíveis de comunicação de seus funcionários e alunos para essas empresas em troca do uso “gratuito” do serviço. A Nathalie falou um pouco sobre isso.

Nathalie Fragoso: Olha, eu vejo como um foco de vulnerabilidade informacional, né, pras crianças e adolescentes, como indivíduos, mas também para política pública e a educação, né?E para o que está sendo vazado em termos de informação, em termos de potencial analítico. Então, são contratos de doação, mas considerando o perfil dos atores que estão do lado de lá dessa relação contratual, a gente observa que, na verdade, a moeda de troca dessas transações é um acesso aos dados dos alunos e alunas brasileiros, né? Dados de crianças e adolescentes ensejam uma série de proteções, num é por acaso, é porque são pessoas em situação de desenvolvimento, destinatárias, merecedoras de absoluta prioridade e tenham o tratamento de seus dados condicionados, sempre, ao ao melhor interesse. Então, é preciso observar, se uma política educacional, nesse caso, a escolha da plataforma, a escolha da aplicação que vai viabilizar o ensino à distância no contexto de pandemia, implica uma vulnerabilidade informacional, seja porque implica ameaça à violação da privacidade ou risco à privacidade; seja porque implica risco de perfilização; seja porque implica risco de discriminação. Qualquer um desses riscos, se colocados, necessariamente, estão em contradição com a cláusula do melhor interesse das crianças e de adolescentes.

Felipe de Paula: Além dos dados disponibilizados pelo Google e pela empresa InLoco, os governos também realizaram parcerias com empresas de telecomunicações para coleta de dados de localização das pessoas. Foi o caso de São Paulo, como nos conta a Nathalie:

Nathalie Fragoso: A gente viu outras ferramentas de gestão de dados de localização acontecendo, então, uma delas aconteceu em São Paulo, que envolvia o compartilhamento de dados de deslocamento da população, mas eram dados que foram compartilhados de maneira agregada. A gente num sabia disso no começo e esse é um ponto importante, quando nós soubemos,né, que as empresas de telecomunicações estariam compartilhando dados de localização da população de São Paulo, isso levantou um alerta, duas ações populares foram apresentadas imediatamente, uma delas, inclusive, teve uma cautela deferida, no sentido de publicização desses acordos. E aí, depois dessa movimentação, depois dessas reclamações os termos desses acordos foram divulgados, nós ficamos sabendo que o compartilhamento de dados de deslocamento era um compartilhamento de dados agregados, que aliás, num era nem um compartilhamento, essas empresas disponibilizavam um dashboard, uma plataforma em que era possível visualizar a taxa de isolamento social em diferentes áreas da cidade. Se as pessoas estavam permanecendo ou se locomovendo através do mapa, ali. 

Anna Venturini: Ou seja, o compartilhamento de dados de forma agregada, isto é, dados que passam por processamento estatístico, e sem a identificação individual dos usuários ou domicílios contribui para a preservação da privacidade. 

Felipe de Paula: Mas precisamos lembrar que ainda há riscos relacionados ao uso de dados pessoais nessas tecnologias e nas políticas públicas.

Anna Venturini: A Lei Geral de Proteção de Dados – conhecida como LGPD – que entrou em vigor em 2020 estabelece princípios básicos que devem ser observados na coleta e no uso dos dados. A Nathalie falou um pouco sobre isso com a gente. 

Nathalie Fragoso: A Lei Geral de Proteção de Dados coloca alguns princípios que ajudam a gente a responder essas questões. Um tratamento de dados, ele deve ser necessário. Isso quer dizer que ele deve envolver o mínimo processamento da mínima quantidade de dados para alcançar determinado fim. E por que isso? Porque um tratamento maximalista, digamos assim, implica mais riscos. Outra coisa, é o princípio da finalidade, ou seja, eu, Nathalie, tive meus dados coletados para uma finalidade específica, fui ao hospital, testei lá pra Covid, tive um positivo ou um negativo, aquela informação tá ali e vai ser registrada, vai ser identificada pelo Ministério da Saúde, que vai usar essa informação, necessariamente, para formular suas políticas, para contar os casos positivos, para fazer o seu boletim epidemiológico, enfim, a finalidade é de saúde. Se esse dado começar a ser utilizado para outro fim, que não era nem previsível, nem consentido, a depender do caso, já há uma extrapolação também, já há uma violação, um tensionamento desse meu direito. Um outro princípio importante: princípio da proporcionalidade, princípio da segurança… Então, assim, essas vias permitem que a gente submeta essas várias políticas a um escrutínio sobre: é razoável ou não é razoável. 

Felipe de Paula: Mas o uso de dados pessoais em políticas públicas não envolve apenas discussões sobre privacidade. Há muitos direitos envolvidos e que podem ser alvo de algum desrespeito a depender da forma de coleta, uso, armazenamento e compartilhamento. Basta pensar que o uso indevido de um dado de saúde sensível de um cidadão pode impactar na avaliação de um prêmio de seguro, ou mesmo na sua contratação.

Anna Venturini: Também não podemos esquecer que quando  o assunto é a elaboração de políticas públicas, a negligência em relação à coleta e utilização dos dados de uma determinada região ou população pode desencadear medidas  por parte do estado que reforçam  as desigualdades sociais já existentes. Ainda mais no contexto da pandemia, onde a vulnerabilidade social dos que já eram historicamente vulneráveis  se tornou ainda maior.

Felipe de Paula: Pois é, Anna. isso é ainda mais sério quando pensamos que as populações mais vulneráveis são justamente aquelas que mais dependem da atuação estatal, e que portanto têm mais dados coletados e utilizados pelo poder público.

Anna Venturini: O estudo  ‘’Prioridade na vacinação negligencia a geografia da Covid-19 em São Paulo, realizado pelo Lab Cidade – Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade’ da Universidade de São Paulo, mostra que o poder público, a sociedade civil e a mídia, por meio de seus diagnósticos baseados nas tecnologias de controle da pandemia, sabiam que as hospitalizações, óbitos, e infecções pela Covid-19 atingiriam com muito mais intensidade os bairros mais pobres da cidade,  principalmente aqueles que concentram maior precariedade nas condições de moradia como favelas e cortiços, predominantemente habitados pela população negra. As autoridades estavam cientes de que tanto territórios periféricos como Sapopemba, Capão Redondo ou Brasilândia, quanto centrais, como República e Santa Cecília, por exemplo, seriam desproporcionalmente devastados pelo coronavírus  e mesmo  assim, não foi adotada nenhuma política de prevenção territorializada para conter o contágio entre os moradores desses bairros.
A pesquisa  também destaca que a opção de vacinar os mais velhos primeiro, acabou por resultar em um percentual  significativamente maior de vacinados no chamado eixo sudoeste da cidade, onde se concentra uma população branca com maior média etária e mais renda. O estudo também concluiu que  as  estratégias de prevenção e imunização definidas pelo poder público  deixam de lado os grupos mais afetados pela covid 19, compostos principalmente  por negros e negras com baixa renda e moradores de comunidades. O que pode ser visto como um exemplo de como o racismo estrutural opera na construção das  políticas públicas.

Felipe de Paula: Mas não é apenas a negligência sobre os dados coletados na hora de elaborar políticas de governo que preocupa. Outra preocupação se mostra recorrente com relação ao uso de dados em tempos de pandemia: o aumento da vigilância do estado. O João deu um exemplo pra gente: 

João Abreu: Olha,eu acho que existe o potencial teórico, eu não vi nesse contato com os municípios e com os estados nada que tenha me preocupado, mas quais são alguns potenciais teóricos, que na verdade tem tudo a ver com os exemplos que a gente deu aqui: quando você está fazendo análise por bairro, de nível de isolamento social, quantas pessoas estão ficando em casa ou saindo, é bastante possível e eu até já vi alguns dados nessa direção, que você descubra que alguns bairros estão mais flexíveis, digamos assim, as pessoas estão respeitando menos eventuais medidas de ficar em casa do que em outros bairros. E aí você poderia ter, eu não vi acontecendo, tá? Por isso teórico, mas você poderia ter medidas do tipo “nesse bairro aqui vai ter um policiamento mais forte porque as pessoas estão desrespeitando mais”. Isso do ponto de vista estritamente epidemiológico pode parecer bastante razoável, mas é claro que em um contexto como o do Brasil você vai perceber vieses muito importantes se você, de fato, fizer isso. Por exemplo, os bairros mais pobres sem dúvida vão ser os bairros em que as pessoas vão estar se movimentando mais, seja porque elas tem que sair de casa, seja porque nem adianta muito ficar em casa, do ponto de vista epidemiológico porque tem muita gente num espaço pequeno, aí você pode começar a ter medidas mais agressivas de monitoramento e de “enforcement” mesmo dessas regras em bairros mais pobres do que mais ricos, por exemplo. Consigo imaginar isso acontecendo e acho que isso geraria alguns vieses bem preocupantes e que dá para chamar sim de discriminatórios. 

Anna Venturini: De fato as tecnologias baseadas em georreferenciamento e cruzamento de dados pessoais usadas para controlar covid-19, têm potencial para ampliar e muito a vigilância do estado sobre os cidadãos. Na Espanha, por exemplo, a polícia usou drones para monitorar as algumas cidades, alertando as pessoas para que saíssem das ruas e voltassem às suas residências para cumprir o isolamento social.
Na China o governo desenvolveu um sistema onde QR Codes, também instalados por aplicativos nos smartphones, que devem ser mostrados às autoridades para permitir a circulação das pessoas em algumas regiões. Os QR Codes classificam cada pessoa por cores onde verde permite a circulação, e amarelo e vermelho indicam  que o cidadão deve sair do espaço público para cumprir a quarentena.

Felipe de Paula: E como dissemos, a desigualdade social, racial e geográfica no acesso a serviços públicos e políticas de bem estar pode ocasionar o uso discriminatório de dados. Isso pode ocorrer em razão de questões tecnológicas, como a programação de inteligência artificial. Como a gente comentou no episódio anterior, a programação é uma área sujeita a vieses daqueles que escrevem os códigos – em sua maioria, ainda homens brancos. 

Nathalie Fragoso: Quando a gente tem uma política social que é datificada, ou seja, quando ela passa a ser cada vez mais dependente do uso de dados para sua formulação, para sua operacionalização, para a tomada de decisões, a gente começa a ficar sujeito, começa a ter que prestar atenção ao potencial discriminatório do uso dessas informações. Por exemplo,  o caso específico de uma tecnologia que usava inteligência artificial nos Estados Unidos para distribuir recursos de saúde e acabava sempre privilegiando pacientes brancos porque era uma tecnologia que usava, como informação, o histórico de acesso de uso dos pacientes a recursos hospitalares, a recursos médicos. Como pacientes brancos tinham mais acesso a hospital, mais acesso a medicamento, mais acesso à saúde, aquilo acabava sendo cristalizado nas decisões que o sistema tomava a partir de então. Então, esse é um exemplo de uso discriminatório que é documentado e associado à saúde e derivado do uso de dados, pretéritos para a tomada de decisões presentes ou futuras.

Anna Venturini: O que o exemplo da Nathalie mostra é que a discriminação também pode ser resultado de um problema prévio, ou seja, a forma como é construída a base de dados que será utilizada para estruturar uma política e os seus algoritmos de decisão. Para que dados sejam úteis para a elaboração de uma política pública, eles precisam ser representativos da população que a política precisa atingir. Para isso, há muitos cálculos estatísticos envolvidos no processo de coleta. Se a base não for representativa, os dados podem acabar distorcendo a realidade. Por  exemplo, se o algoritmo decisório reproduzir vieses, está dada a receita de um uso potencialmente discriminatório.

Nathalie Fragoso: E aí, também, há possibilidade do viés aparecer na base de dados, que pode não ser representativa ou pode reproduzir ou espelhar essa desigualdade e isso não ser enxergado por quem trata aqueles os dados. Pode estar no próprio desenvolvimento da tecnologia, na formulação dos critérios, a depender de que tipo de tecnologia a gente está falando; pode estar no processo de limpeza dos dados, no processo de teste que não identifica um padrão discriminatório. Então, os vieses no uso de tecnologias podem aparecer a todo tempo. Por isso, o alerta antidiscriminatório no uso dessas ferramentas tem que estar sempre ligado. 

Felipe de Paula: E como já foi mencionado, Anna, não podemos esquecer que alguns grupos populacionais são objeto de um volume maior de coleta e uso de dados. Em geral, o Estado capta os dados de todas as pessoas nos registros gerais – RG e CPF. Mas há outros dados que apenas são coletados quando nos cadastramos para usar algum serviço público, como por exemplo o Cartão Nacional de Saúde que fazemos para usar o SUS.

Anna Venturini: Logo, se você nunca utilizou o SUS na sua vida, você terá um menor volume de dados de saúde coletados e armazenados pelo Estado. Ou seja, as pessoas que são mais dependentes de políticas públicas, especialmente de saúde e assistência social, ficam mais expostas e têm menos autonomia para negociar termos de privacidade e de se proteger. 

Nathalie Fragoso: Se eu faço uso do sistema público de saúde, eu também fico vulnerável ao tratamento de dados tal qual ele ocorre naquelas instituições públicas. Então, acho que esse é um elemento de desigualdade que pode reverberar em discriminação, no seguinte sentido: se eu sou mais dependente de política pública, eu tenho menor chance de dizer ‘não’ para uma atividade de coleta que talvez seja excessiva, que talvez seja arriscada. As pessoas que, por exemplo, usam o Bolsa Família, são beneficiárias do Bolsa Família, não consentem se têm seus dados coletados para serem selecionadas, não consentem se têm seus dados divulgados mensalmente. Então, acho que esse é um elemento que precisa ser levado em consideração. 

Felipe de Paula: Há ainda um outro risco, Anna. Os dados e tecnologias também podem ser utilizados para finalidades não democráticas e com viés autoritário. Uma situação de emergência como a pandemia pode servir de justificativa para o uso indevido de dados pessoais.

Anna Venturini: O risco também existe no Brasil. Em 2020 tivemos uma tentativa de uso por parte do governo federal que motivou uma série de medidas judiciais, já que foi considerada um compartilhamento que colocava em risco a liberdade e a cidadania. O Pedro vai nos contar um pouco mais sobre isso.

Pedro Ansel: No ano passado, a Ministra do Supremo Tribunal Federal,  Rosa Weber, determinou a  suspensão do trecho da Medida Provisória do governo federal que obrigava empresas de telefonia a compartilhar dados de pessoas físicas e empresas com o IBGE.  O governo argumentava que o compartilhamento era importante para a realização de “entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares”.
Já o IBGE  justificou que as informações dos consumidores seriam importantes para a “continuidade da coleta das pesquisas e dos trabalhos desenvolvidos junto à área da saúde”. A suspensão  da Medida Provisória acatada pela ministra se deu em decorrência de uma ação no STF movida pela OAB, sob o argumento de que  o repasse dos dados pessoais de pessoas físicas e jurídicas, feito pelas operadoras ao governo federal é inconstitucional por colocar em risco o direito à privacidade dos cidadãos.

Felipe de Paula: A Nathalie falou um pouco sobre as questões jurídicas envolvidas no caso:

Nathalie Fragoso: Ano passado, o ano começou com um imbróglio, né? LGPD estava correndo risco de ser adiada e muitas pessoas dizendo que a pandemia era a razão para adiar a LGPD… No meio do caminho, aparece uma MP do presidente Bolsonaro, era uma MP que não dizia que era por conta da pandemia, dizia que era para fins estatísticos, mas não falava em segurança; não falava por que é que era necessário o compartilhamento dos dados das mais de duzentas milhões de linhas e dos respectivos usuários; não falava as condições em que esse acesso seria operacionalizado para que esses dados fossem preservados. E aí, essa MP gerou cinco ou seis ADIs que foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, e a cautelar foi no sentido de que esse compartilhamento não devia acontecer, ou seja, foi suspensa a eficácia  da medida provisória. E o Supremo reconheceu um direito fundamental à proteção de dados dizendo que esse compartilhamento não vai existir, porque, em situação de crise, é comum que essas medidas excepcionais se coloquem, e uma vez colocadas, elas não retrocedem. Então, estava colocado ali um risco à cidadania, um risco à democracia, um risco à liberdade, um risco à proteção de dados que deveria ser um anteparo de todos esses direitos. 

Anna Venturini: Discutiremos bastante alguns casos brasileiros no episódio 5. Mas, desde já, vale lembrar que além de usos potencialmente autoritários de dados pessoais, outro ponto que chama a atenção é a segurança desses dados. Não faz muito tempo – no começo de 2021 – tivemos um caso emblemático de um megavazamento de dados de todos os cidadãos brasileiros.

Felipe de Paula: Esse caso chamou atenção porque os vazamentos incluíam dados de 223 milhões de pessoas. Você pode estar se perguntando: mas, Felipe, esse número é superior à população brasileira? Calma, esses dados incluíam pessoas já falecidas e CPFs duplicados. 

Anna Venturini: Juntos, esses vazamentos continham dados básicos: nome, data de nascimento, endereço, fotos, resultados de avaliações de crédito, imposto de renda de pessoas físicas, escolaridade, benefícios do INSS, entre muitos outros. Ainda não se sabe de onde esses dados foram retirados ilegalmente, nem os impactos que isso pode gerar. 

Felipe de Paula: Apesar da proporção do vazamento, o caso não teve grande repercussão no debate público. Mas, pelo que conversamos com o João, o compartilhamento de dados sem cuidados e medidas de segurança é mais comum do que parece: 

João Abreu: O que me preocupa mais do que uso autoritário desse tipo de coisa é na verdade o descuido mesmo, sendo bem transparente. O nosso trabalho com os municípios e estados de perto revela muito mais uma falta de conhecimento técnico e até valorização, mesmo, desses dados e da importância do sigilo deles, do que alguma intenção negativa por trás do uso desses dados. Por exemplo, no caso da Impulso, a gente já recebeu mais de uma vez dados sensíveis, o que a Lei chama de dados sensíveis. Nesse caso, dados de saúde de pessoas, inclusive mencionando informações de exames passados, diagnósticos e tudo, por e-mail. Recebe um e-mail, sem senha, sem nada, e chega uma planilha com todo mundo do município, todas as informações daquelas pessoas ali. Por mais que a gente tenha um cuidado muito grande com isso do lado da Impulso, quando a gente vai tratar esses dados e manusear, o governo também precisa mudar um pouco a forma como ele enxerga essas informações. Acho que teve um avanço normativo fundamental na LGPD, mas ainda não teve uma grande mudança de comportamento na prática.
Eu não vi nenhum governo falando “eu sei que esse dado é super sigiloso mas dane-se, toma aqui ele”. É sempre alguma coisa como “ah, você tinha pedido aquele dado, tal, tá aqui”. E a gente na verdade tinha pensado que ia assinar um termo, de como a gente ia usar o dado, explicar a finalidade, aí ia ter uma transferência segura de algum tipo, com senha e tal, e não teve nada disso. São coisas que nos preocupam, porque mostram que do lado de lá, do lado do governo, ainda está muito fraca essa cultura e isso eu acho que a gente pode fortalecer. Tanto do ponto de vista técnico… mas eu confesso que eu acho é mais do que isso, tá? Não é uma questão de “eu, gestor público, queria ter protegido mais esse dado mas eu não sabia o que fazer, então eu mandei em anexo por e-mail”. Agora que tem esse olhar muito mais atento e a própria LGPD em cima desses dados, essa pessoa precisa de uma mudança de mentalidade que não é óbvia. Acho que tem muito de conscientização nesse processo… e sim, a parte técnica. 

Anna Venturini: Ou seja, é fundamental que o Estado tenha protocolos adequados e transparentes para que as informações sejam protegidas e geridas com responsabilidade. Não podemos subestimar a importância da transparência sobre a coleta, o armazenamento, o uso e o compartilhamento de dados. É fundamental que tenhamos mais segurança.

Felipe de Paula: E isso vale tanto para o Estado quanto para a iniciativa privada. Muitos aplicativos que temos no celular coletam dados pessoais e a gente nem percebe. Quem nunca instalou um aplicativo que pedia autorização para se conectar com as nossas redes sociais ou com o nosso e-mail? É muito comum. Mas você já parou para ler os termos de uso dos aplicativos que você baixa? A Nathalie contou para gente que isso é muito importante.

Nathalie Fragoso: Já que a gente está falando do uso das aplicações, esse é um âmbito em que é possível exercer algum controle, né? Então, se eu vou baixar um aplicativo, é importante ler os termos de uso, é importante ler as políticas de privacidade, é importante saber com quem aqueles dados são compartilhados, para quê são coletados, com quem e para quê são compartilhados, como são guardados, por quanto tempo são guardados. Se o aplicativo não fala sobre isso, se o aplicativo fala de maneira muito genérica, por exemplo, já é um mau sinal, já é um sinal de que aqueles dados não estão sendo bem coletados. Há uma pesquisa interessante sobre aplicações, por exemplo, que ajudam no monitoramento do ciclo menstrual das mulheres, e como tinham políticas de privacidade muito problemáticas. É uma publicação feita pela Privacy International e está disponível na internet para todo mundo ver como esses dados, que são dados de saúde, mas que podem ser analisados de modo a ser dados usados para propaganda, né? Então, havia ali uma associação, por exemplo, do momento do ciclo ao momento em que a mulher seria submetida a uma propaganda de chocolate, ou há um caso também anedótico de uma mulher que começou a receber propaganda de fralda, ou de coisas para criança, antes de saber que estava grávida.
É importante olhar para essas políticas de privacidade e para esses termos de uso com seriedade e que tipo de permissões ele coleta. Se tem um aplicativo que serve só pra me dar informações, ele não precisa de acesso ao meu microfone, não precisa de acesso às minhas bibliotecas, não precisa de acesso à minha câmera, por exemplo. Então, é esse tipo de juízo, né? Primeiro, o aplicativo está me pedindo permissão? Segundo, está pedindo permissão que faz sentido de acordo com a funcionalidade? Todas essas são boas questões para se levantar e estão dentro da nossa agência como titulares de dados ou, a depender do caso, como consumidores também.

Anna Venturini: No caso do Estado, há ainda a questão da centralização e da unificação de bases de dados que falamos no primeiro episódio. Os dados devem ser tratados diante de finalidades específicas. Ou seja, se um dado foi coletado com o objetivo de embasar e monitorar uma política educacional, ele não deveria poder ser usado em outras áreas. A Nathalie deu mais alguns exemplos pra gente.

Nathalie Fragoso: É isso, a gente precisa de informação para o funcionamento dessa máquina burocrática, está claro. Mas a informação, ela deve ser gerida de maneira responsável, de maneira a evitar os riscos que são já conhecidos. Então, um primeiro passo, eu diria que é esse, da minimização, né? Acho que o Estado não pode ser visto como um ente que trata dados, mas como vários entes que tratam dados na medida da necessidade do exercício das suas respectivas competências. Então, acesso a dados de saúde é para quem precisa de dados de saúde, acesso a dados de assistência é para quem precisa de dados de assistência para exercer sua competência. Ou seja, estou coletando dados para oferecer um benefício social, é uma coisa, mas eu não posso usar esses dados eventualmente para informar um processo criminal, por exemplo, ou aplicar uma sanção. Então, essas barreiras entre essas bases de dados, entre esses universos parciais de dados, eu acho que isso são importantes de ser construídas, e essas ferramentas legais e tecnológicas que esmaecem esses limites, que facilitam o compartilhamento, que reduzem a possibilidade de controle desse compartilhamento, eu acho que elas fragilizam a cidadania, fragilizam os cidadãos e cidadãs. 

Felipe de Paula: Bom, dito tudo isso, Anna, me parece que temos um bom diagnóstico da situação. Dados são fundamentais para a elaboração e o monitoramento de políticas públicas nas mais diversas áreas. Na pandemia, eles ajudaram muitos gestores a analisar rapidamente se as políticas de contenção do vírus e as medidas de distanciamento social estavam ou não sendo efetivas.
Porém, o tratamento de dados pessoais é assunto sério e demanda maior controle por parte de agentes públicos e privados. Esses dados precisam ser tratados com segurança, precisamos de mais transparência sobre a finalidade do seu uso, de modo a garantir que a coleta, os usos e os compartilhamentos estejam em conformidade com a lei. Só assim poderemos manter os dados pessoais dos cidadãos protegidos de interferências e usos indevidos. Mas ainda falaremos muito sobre isso nos nossos próximos episódios.

Anna Venturini: A gente já tá chegando ao fim deste episódio do Revoar, e assim como nas outras temporadas, a gente vai dar dicas de filmes e livros pra você continuar refletindo sobre o assunto. A Luisa Plastino questionou nossos convidados sobre isso. Primeiro, as dicas da Nathalie Fragoso:

Nathalie Fragoso: Os dois filmes que me ocorrem são filmes que não falam de nada dessas coisas que a gente abordou aqui, mas tratam de coisas que pra mim são fundamentais nessa conversa sobre privacidade e vigilância, enfim, com pandemia ou sem pandemia. São aqueles dois filmes que foram indicados ao Oscar, aliás, “Judas and The Black Messiah” e o outro “Os Sete de Chicago”. E são filmes que não tratam de tecnologia, não tratam de dados, mas tratam de informação e tratam de poder. Em um e em outro, a gente vê ali infiltração e esses aparatos de inteligência sendo mobilizados para desmobilizar movimentos de contestação, de reivindicação de direitos. A gente observa ali, a organização política sendo infirmada com uma série de práticas e ferramentas mas, sobretudo, com ferramentas informacionais, né? Então, eu acho que são bons filmes para pensar vigilância, sabe? São bons filmes para pensar porque privacidade e proteção de dados são um anteparo para o exercício de outros direitos, assim, são condição de autonomia, são condição de organização política, e são filmes bonitos, também.

Felipe de Paula: A Luisa também perguntou pro João Abreu:

João Abreu: É um livro que se chama “Pacientes que curam”, da Júlia Rocha. A Júlia é uma médica de família e ela basicamente estruturou o livro com contos. Então, cada capítulo tem duas, três páginas, é muito fácil de ler, é muito gostoso, mas muito duro também, porque ela basicamente conta as histórias dos pacientes que ela foi atendendo ao longo da prática de medicina dela, que continua. Eu lembrei dele aqui porque primeiro, é um mergulho no SUS, na saúde pública como ela é mesmo, no território, ali, sem essa conversa mais abstrata dos dados da gestão e tudo, mas você também vê a importância do acompanhamento do que a gente chama da jornada do usuário. Então é muito comum no livro entrar alguém na sala da Júlia e ela falar “pô, eu vi que você há dois meses atrás você faltou no seu pré-natal”, para uma gestante, por exemplo, “me conta o que aconteceu?”, e aí sempre tem uma história incrível e agoniante ao mesmo tempo. Mas é muito interessante para entender como que, na ponta ali mesmo, em algo que o cidadão vê, a gente está usando dados, a gente está usando esse tipo de informação para tentar fazer as melhores políticas públicas possíveis nesse caso de saúde. E o mais importante: é, realmente, muito gostoso de ler, eu ficava contente toda vez que eu lembrava de ler ali mais um capítulo antes de dormir. Então acho que essa é a dica.

Anna Venturini: E a Luisa também tem dicas culturais pra dar aqui no Revoar.

Luisa Plastino: Bem, a nossa dica de hoje é um livro! Um livro sobre uma outra pandemia, que atingiu o Brasil há 103 anos atrás: a pandemia da gripe espanhola. Publicado no ano passado, o livro “A Bailarina da Morte” foi escrito por duas historiadoras brilhantes: a Lilia Schwarcz e a Heloísa Starling. As autoras contam que na época da Primeira República, o Brasil ainda não tinha uma estrutura nacional no campo da saúde pública e a atuação médico-científica era pautada por uma lógica higienista. Por isso, quando o vírus influenza chegou ao país em 1918 por meio das embarcações que vinham da Europa, as soluções e os métodos de combate à doença foram marcados pela desinformação, com o uso de remédios milagrosos e pela utilização de medidas discriminatórias contra populações marginalizadas, como recém os libertos, os trabalhadores do campo e da cidade e os migrantes. Recomendamos o livro, porque a partir de narrativas reais e instigantes podemos olhar pro nosso passado e entender melhor tanto as discriminações que atravessam as pandemias quanto as omissões e violações que governos podem cometer durante crises sanitárias. Boa leitura!

Felipe de Paula: E assim a gente termina o segundo episódio da terceira temporada do Revoar, o seu podcast sobre liberdade e autoritarismo. 

Anna Venturini: Nosso papo da semana que vem será sobre quem são as pessoas vigiadas. Nossos convidados serão os pesquisadores Pablo Nunes do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e Rafael Zanatta do Data Privacy

Felipe de Paula: Você também pode acompanhar o Revoar pelo Instagram, em @revoar.podcast, e pelas redes sociais do LAUT.
As referências dos áudios que a gente usou nesse programa tão na página do Revoar, no site do LAUT, em laut.org.br/revoar.

Fiquem bem. E até semana que vem.

Anna Venturini: O Revoar é uma produção da Rádio Novelo para o LAUT – o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.
A coordenação é da Paula Scarpin e da Clara Rellstab. A produção é da Clara Rellstab, e a edição é da Claudia Holanda. A pesquisa para este podcast é do Pedro Ansel e da Luisa Plastino, que também participam das entrevistas. A música original é da Mari Romano, e a finalização e a mixagem do programa são do João Jabace. A coordenação digital é da Iara Crepaldi, da Andressa Maciel e da Bia Ribeiro, que também faz a distribuição.

Felipe de Paula: Nos vemos na próxima revoada. Até lá!

O novo coronavírus chegou ao Brasil no início de 2020 e fez com que o Estado tivesse que atuar muito rapidamente para formular e implementar políticas públicas de contenção de um vírus até então desconhecido pelo mundo.

Essa situação exigiu do poder público respostas rápidas com base nas informações disponíveis naquele momento, tais como a recomendação de medidas de isolamento social, o uso de máscaras e, em alguns municípios, o bloqueio total – mais conhecido como lockdown.

Para formular, implementar e acompanhar os efeitos dessas políticas, entes governamentais e empresas privadas começaram a utilizar dados pessoais da população, que são muito importantes para a formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas nas mais diversas áreas. Para acompanhar as medidas de isolamento social, alguns Estados e municípios, por exemplo, firmaram parcerias com empresas privadas para usar dados de geolocalização das pessoas, um recurso que permite determinar o local de um dispositivo eletrônico, como o celular. 

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – em vigor desde 2020 – estabelece princípios básicos que devem ser observados na coleta e uso dos dados. Então, se de um lado, o uso de dados pareceu central para a criação de políticas efetivas; de outro, surgiram controvérsias sobre sua coleta, seu uso, armazenamento e compartilhamento. 

A forma como o Estado cuida ou descuida dos nossos dados pode acender alguns alertas. Como saber quais dos seus dados foram coletados e com qual finalidade? Há segurança no uso e armazenamento dessas informações? Quais as garantias de que esses dados não serão utilizados para outros fins ou medidas discriminatórias? Há proteção a dados sensíveis, como de saúde ou de orientação religiosa?

Para refletir sobre esse tema, Anna Carolina Venturini e Felipe de Paula conversam com Nathalie Fragoso, advogada e pesquisadora responsável por análises sobre o uso de dados pessoais para o combate à pandemia; e João Abreu, cofundador da Impulso Gov, uma organização sem fins lucrativos que trabalha com estados e municípios para aprimorar o uso de dados e tecnologia na área de saúde. 

Aprofunde-se no tema

Ao final do episódio, nossos apresentadores e convidados indicam livros, filmes, documentários e artigos que colaboram para o aprofundamento do tema discutido. Confira:

A pesquisadora do Revoar Luisa Plastino sugere a leitura de:

  • ‘A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil’,  de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling

[https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14943]

Nathalie Fragoso indica os filmes:

João Abreu indica o livro:

Áudios utilizados no episódio 02

Trecho da reportagem: ‘COVID-19. Veja as informações mais recentes do MS sobre o COVID-19’, do Jornal O Globo. 

O Revoar é publicado semanalmente, às quintas-feiras, sempre no começo do dia. A temporada Vigilância, vigilantismo e democracia é apresentada por Anna Carolina Ribeiro e Felipe de Paula, com produção da Rádio Novelo.

Para falar diretamente com a equipe, escreva para revoar@laut.org.br.

Acompanhe o Revoar também no Instagram.

Convidados do episódio
Nathalie Fragoso

Advogada criminalista e pesquisadora em direitos humanos, direitos digitais e processo penal, é doutora em Direito pela Faculdade de Direito da USP Possui o Zertifikat in den Grundzügen des deutschen Rechts (Certificado em Noções Básicas de Direito Alemão) e o LLM (Mestrado em Direito) na Ludwig-Maximilians-Universität München. Integra o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu desde 2015.

João Abreu

Mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School, graduado em Economia pela Universidade de São Paulo, é cofundador e diretor da organização sem fins lucrativos Impulso Gov, que trabalha com estados e municípios para aprimorar o uso de dados e tecnologia na área de saúde. 

Ficha técnica

O podcast é uma produção da Rádio Novelo para o LAUT
Apresentação: Anna Carolina Venturini e Felipe de Paula
Coordenação: Clara Rellstab
Roteiro: Anna Venturini, Felipe de Paula, Luisa Plastino e Pedro Ansel
Tratamento de roteiro: Clara Rellstab
Pesquisa: Pedro Ansel e Luisa Plastino
Edição e montagem: Claudia Holanda e Julia Matos
Finalização e mixagem: João Jabace
Engenheiro de som: Gabriel Nascimbeni (Estúdio Trampolim)
Música original: Mari Romano
Identidade visual: Sergio Berkenbrock dos Santos
Coordenação digital: Iara Crepaldi e Bia Ribeiro
Redes sociais: Andressa Maciel e Iara Crepaldi

Para falar com a equipe: revoar@laut.org.br