Temporada 3 Vigilância, vigilantismo
e democracia
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Episódio 05

Da proteção de dados à inteligência estatal

Anna Venturini: Olá, eu sou a Anna Venturini.

Felipe de Paula: Eu sou o Felipe de Paula.

Pedro Ansel: E eu sou o Pedro Ansel.

Anna Venturini: E este é o quinto episódio da terceira temporada do Revoar, o podcast do LAUT, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.

Felipe de Paula: Nessa temporada, o assunto é vigilância e vigilantismo. E, no episódio de hoje, a gente vai falar sobre a vigilância estatal.

Anna Venturini: Nossos entrevistados são o José Rafael Carpentieri, advogado e pesquisador na área de inteligência estatal, e o Paulo Rená, integrante da ONG AqualtuneLab e ciberativista que participou da elaboração do Marco Civil da Internet.

Trecho de vídeo ‘Seopi destaca suas principais ações em 2019’, do canal MInistério da Justiça e Segurança pública.

Felipe de Paula: Desde o primeiro episódio dessa temporada, a gente bate na tecla de que a vigilância não é uma atividade nova. As técnicas de vigilância existem e são utilizadas pelos Estados há muito tempo.

Anna Venturini: É, Felipe. E a gente já falou muito do Estado e de como os dados são importantes para a formulação de políticas públicas. Só que antes de ir em frente, a gente precisa dar um passo atrás e lembrar que não estamos falando de um ente único e uniforme.

Felipe de Paula: Exato. Na verdade, o Estado é composto por uma série muito diversa de atores, agências, secretarias, empresas estatais e outros entes. O Paulo Rená explica isso muito bem:

Paulo Rená: O Estado não é uma coisa única, o Estado não é um bloco, o Estado é um mosaico. Então, a gente tem, além de Governo Federal, Governo Estadual, 5.000 localidades no Brasil, Governo Municipal, a gente ainda tem, por exemplo, só na administração pública, diversas secretarias, diversos ministérios, as chamadas pastas, além da administração indireta, então tem empresas como a Petrobras, institutos de pesquisa, né, enfim. A gente tem uma variedade de componentes disso que a gente chama como Estado, e então, assim, o uso que a polícia faz dos nossos dados pessoais é diferente do uso que hospitais vinculados ao SUS vão fazer dos nossos dados pessoais, que é diferente do uso que o Ministério do Desenvolvimento Social vai fazer, ou uma secretaria de, sei lá, que vai tratar de questões de educação vai fazer. Então, em cada uma dessas áreas a gente tem bons e maus usos. Então não dá pra cravar uma resposta, se usa bem ou se usa mal.

Anna Venturini: Como bem falou o Rená, além de termos esse mosaico atuando diariamente, coletando dados e implementando políticas públicas, é fundamental entender que o uso dos dados e a vigilância do Estado não está limitada a isso.

Felipe de Paula: Com certeza não, Anna. Por exemplo, a gente tem a inteligência, que é uma atividade tradicional do Estado que existe há muito tempo. A ideia básica por trás dela é obter, analisar e disseminar conhecimentos dentro e fora do território nacional que tenham influência sobre o processo decisório no país, ou que, em tese, coloquem em risco a segurança da sociedade e do Estado.

Ou seja, o Estado vigia outros países — parceiros ou inimigos externos —, e também vigia cidadãos que possam representar uma “ameaça interna”. Mas eu tô apressando o passo aqui, vamos por partes.

Anna Venturini: Vamo lá. Pode parecer teoria da conspiração, mas o “Estado espião” é uma realidade. Todos os países possuem sistemas de inteligência que buscam identificar ameaças e dar mais subsídios às decisões internas.

Felipe de Paula: Tradicionalmente, a inteligência estatal — e a espionagem — sempre foram mais voltadas para os inimigos externos, principalmente outros países, com o objetivo de garantir a segurança nacional.

A presença de um sistema de inteligência que atue em conjunto com as forças de segurança — inclusive nas regiões de fronteira — é, em tese, fundamental para garantir a soberania territorial de um país.

No Brasil, o primeiro órgão de inteligência voltado para as questões de segurança nacional foi o CDN, Conselho de Defesa Nacional, criado pelo presidente Washington Luís em 1927. A ideia de um verdadeiro sistema de inteligência surge lá na década de 70 com o Sistema Nacional de Informações –  SISNI, composto por diversos integrantes.

Anna Venturini: Nos Estados Unidos, a Agência Central de Inteligência — mais conhecida como CIA — foi criada em 1947 por ex-membros do OSS, o Escritório de Serviços Estratégicos, responsável por realizar ações encobertas, assassinatos de nazistas e sabotagem de pontes durante a Segunda Guerra Mundial.

Felipe de Paula: Outros Estado também têm suas agências e sistemas de inteligência. E debates sobre espionagem entre Estados, embora pareçam sair de filmes antigos, são na verdade recorrentes e geram questionamentos até hoje. [Você já ouviu, na abertura desse episódio, um áudio que remete ao caso de espionagem feita contra a Presidenta Dilma Rousseff, revelada pelo chamado caso Snowden.] O Rafael Carpentieri também nos contou sobre um caso recente investigado pela Comissão Europeia:

Rafael Carpentieri: Esse monitoramento, ele ocorre entre estados, que é a espionagem. Então, a comissão europeia fez uma acusação contra a Checoslováquia, né, República Checa, porque eles recebem um número de diplomatas russos muito excessivo, isso seria um indicativo de espionagem, escritório de espionagem em Praga que serve para monitorar a Europa inteira. Mas isso de certa forma se justifica, porque a Rússia é cercada pela OTAN, que então você tem aí uma questão de Estado, uma questão militar.

Felipe de Paula: Só que, além de espionar países, Estados também espionam sua própria população. Parece estranho, mas isso está ligado à ideia de que também existem inimigos internos que precisam ser “combatidos”.

Anna Venturini: O Rafael contou pra gente que a ideia de inimigo interno está ligada ao conceito de inimigo desenvolvido pelo jurista alemão Carl Schmitt, considerado um dos principais autores do pensamento autoritário e reacionário no século vinte.

De modo bem simplificado, a gente pode dizer que o Schmitt via a política numa perspectiva parecida com a guerra. Funcionava mais ou menos assim: a pessoa que governa é aquela que pode derrotar seus rivais.

Desse modo, os conceitos de amigo e inimigo seriam, para ele, inerentes à própria política. Para Schmitt, a força motriz do Estado depende, em alguma medida, de um inimigo, de um estranho, de um outro que o confronte de forma real ou potencial. Um inimigo político pra chamar de seu.

Felipe de Paula: Anna, e é nessa linha que o Estado, sob o argumento de estabilizar a ordem e de manter a paz, acaba elegendo inimigos — sejam eles reais ou fictícios —, vigiando, controlando e punindo, de maneira legítima e ilegítima, aqueles que alegadamente o ameaçam.
O Rafael complementa essa ideia:

Rafael Carpentieri: Se você pega, por exemplo, o que aconteceu no Brasil de não punir o general Pazuello, essa decisão é completamente coerente com a doutrina das forças armadas, porque eles viram a população na rua. Então, para eles é o inimigo. E é interessante que do ponto de vista do Carl Schmitt a nação, ela se funda perante um inimigo existencial. Então, esse pessoal, ele acredita que eles são os brasileiros e os outros não são, são os inimigos que estão dentro do país. 

Anna Venturini: Isso vale aqui no Brasil e também no mundo — tanto no passado quanto no presente. E essa ideia de que existem inimigos em uma guerra interna contra as autoridades também recebe um outro nome: guerra insurrecional.

O Rafael explicou pra gente como as ideias da teoria da guerra insurrecional desenvolvidas por estudiosos franceses durante a Guerra da Argélia, influenciaram os militares brasileiros e a doutrina da segurança nacional. Escuta só:

Rafael Carpentieri: A atividade de inteligência é o elemento essencial principalmente para a defesa externa. Agora, a gente tem um modelo de defesa, que é o modelo que copia a teoria da guerra insurrecional que a França desenvolveu durante a guerra da Argélia, né? A guerra de independência da Argélia. Então, os militares que colaboraram com a ocupação nazista aqui, depois eles desenvolveram a teoria da guerra insurrecional quando teve a guerra da Argélia. E a doutrina de segurança nacional que dá base para o Sistema Nacional de Informação, ela é uma cópia dessa doutrina da guerra insurrecional. Quer dizer, a existência de um inimigo interno dentro da própria sociedade. Daí você colocar, então, todo um grupo dentro da sociedade à margem da lei. E é interessante porque o inimigo interno, ele não é só um inimigo político dentro dessa perspectiva, um inimigo interno no sentido Schmittiano, no sentido que o Carl Schmitt fala da ameaça existencial. Então, o comunismo para esses militares na época era algo que ameaçava a sua própria existência, porque o comunismo aparece dentro do movimento tenentista, você tem 1935 que é uma ruptura dentro das forças armadas.

Felipe de Paula: Então, no final da década de 1950 o Brasil também passou a ser muito influenciado por essa ideia de combate ao inimigo interno. No nosso caso, o comunismo, que junto com muitos outros fatores desencadeou no golpe de 1964 e no início da ditadura militar.

Anna Venturini: Foi durante a Ditadura que começou a ser aplicada a Doutrina de Segurança Nacional, formulada pelos militares da Escola Superior de Guerra e que se transformou em lei em 1968, com a publicação do decreto-lei número 314. 

O objetivo deles era identificar e eliminar os “inimigos internos”, entendidos como todas as pessoas que questionavam ou criticavam o regime militar e assim garantir a segurança nacional.

Felipe de Paula: A doutrina da segurança nacional também resultou na criação do Serviço Nacional de Informações – o SNI, instituído em 1964. O General Golbery do Couto e Silva, associado à Escola Superior de Guerra, foi o idealizador do órgão e nomeado pelo presidente Castelo Branco para chefiá-lo.

Anna Venturini: O SNI tinha como finalidade oficial “superintender e coordenar” no território nacional todas as atividades de “informação e contrainformação” que interessassem à “segurança nacional”. Mas, na prática, funcionava como um órgão de espionagem e repressão da ditadura. 

Felipe de Paula: O SNI tinha uma agência central em Brasília que recebia informações de agências regionais e de escritórios espalhados pelas capitais e cidades de todo país. Além disso, abrigava cinco secretarias que eram responsáveis por vigiar as atividades de parlamentares, de movimentos de oposição, de escolas, igrejas, sindicatos e vários segmentos da sociedade.
E, para aqueles que eram considerados “subversivos”, o órgão elaborava fichas de registro.

Anna Venturini: Um dos tipos de agentes que colaboravam com SNI eram os chamados “cachorros”, pessoas que não eram remuneradas e que atuavam de forma voluntária. Em geral, eram funcionários públicos que obtinham cargos de confiança em troca de informações de seus colegas de trabalho. Já pensou trabalhar pensando que seu colega pode ser um agente infiltrado? Tenso, né?  

Felipe de Paula: O outro tipo de agente eram os “secretas”, agentes treinados e remunerados que se infiltravam na administração pública e no setor privado em busca de pessoas que deveriam ser “neutralizadas”. Os secretas eram comuns em escolas, universidades, empresas públicas e privadas, dentre outras organizações.

Pedro Ansel: A  Comissão  da Verdade do estado de  São Paulo revelou em 2018 que  reitorias das principais instituições de ensino superior do país contribuíam com o regime militar. Segundo documento produzido pela Comissão, a Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade de São Paulo repassavam informações sobre posições ideológicas de alunos e professores para o SNI. Além do sistema de colaboração  que  entregava relatórios sobre alunos e docentes,  a atividade de espionagem contava com a atuação de membros do governo federal infiltrados nos ambientes universitários. A comissão da verdade também apontou indícios da atuação de espiões do regime militar nas Universidades Federais  da Bahia, Espirito Santo e Rio Grande do Norte, além da PUC-SP e na Universidade de Brasília,

Felipe de Paula: O SNI foi extinto pelo presidente Fernando Collor de Mello e substituído pelo Departamento de Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Depois, no governo de Itamar Franco, o Departamento foi elevado à condição de Subsecretaria de Inteligência.

Anna Venturini: Em 1999, o presidente Fernando Henrique Cardoso criou a Agência Brasileira de Inteligência, a ABIN, e o Sistema Brasileiro de Inteligência, o SisBin, que desenvolveriam as operações que antes eram de responsabilidade do SNI.

Felipe de Paula: A ABIN é o principal órgão do SisBin, integra a Presidência da República, e sua função é analisar ameaças reais e potenciais, defender o estado democrático de direito e a soberania nacional. Mas será que a atividade de inteligência estatal ganhou contornos efetivamente democráticos, rompendo com as características que carregou da ditadura?

Anna Venturini: A Constituição de 1988 é considerada um marco de ruptura com o passado ditatorial e o símbolo do mais ambicioso processo de democratização do país. Só que, apesar de promissora, essa experiência ainda tem resquícios do autoritarismo do passado.

Felipe de Paula: Vocês já devem ter ouvido a expressão “entulho autoritário”. Ela foi utilizada em 1979 pela oposição ao presidente militar João Baptista Figueiredo para se referir à caótica ordem jurídica brasileira após a revogação dos atos institucionais, aquelas normas de exceção impostas pela ditadura.

Anna Venturini: Isso porque, apesar da revogação dos atos institucionais, persistiam na ordem jurídica leis e instituições com a tônica autoritária da ditadura militar. É o caso da Lei de Segurança Nacional, que foi utilizada recentemente para justificar a prisão de pessoas que se manifestaram contrariamente ao governo federal. 

Felipe de Paula: Mas tem mais, Anna. O Rafael Carpentieri contou pra gente que muitas regras da própria Constituição de 1988 referentes a atividades de inteligência e de segurança foram, em verdade, defendidas pelos próprios militares, como pontos dos quais não abririam mão, mesmo com a redemocratização:

Rafael Carpentieri: Com a nova república, ou seja, com a constituição de 88, esse modelo, ele é imposto pelos militares. Então, eu monitorei isso, eu quis tentar entender como é que foi isso na constituinte de 88. Então, eu peguei as gravações dos debates e o noticiário da época. E a coisa meio que foi imposta pelos militares, né? O artigo 142 que hoje está sendo debatido, ele é uma cópia da constituição de 67 e ele foi colocado. E os militares foram bem claros: ou coloca desse jeito ou não tem constituição. Então, o artigo 142 e o artigo 144 que trata das polícias. Isso não foi negociado pelos militares, foi imposto. E aí você tem uma série de problemas porque você tem a lógica do inimigo interno. Você tem o sistema de inteligência que trabalha procurando o inimigo interno, assim como você tem as forças armadas voltadas para o inimigo interno. E as polícias também, as forças policiais.

Anna Venturini: O Rafael também destacou que, a despeito de suas novas características legais e de sua criação já em regime democrático, o fato é que nos últimos anos a ABIN voltou a ser controlada pelos militares, algo que já tinha sido desfeito pela presidente Dilma Rousseff. 

Rafael Carpentieri: Um dos últimos atos da presidente Dilma foi retirar a ABIN do controle militar. Ela em outubro de 2015 tirou a ABIN do controle do GSI, extinguiu o GSI. E o GSI depois foi reestruturado no governo Temer já com toda a composição militar.

Felipe de Paula: Independentemente de seus dirigentes atuais, Anna, a verdade é que a atividade de inteligência estatal por si só ainda parece ser um problema no país. Muitos estudiosos defendem que, na verdade, sua rotina ainda é bastante opaca e marcada por práticas pouco democráticas, mesmo quando se aceita algum grau de sigilo inerente à atividade. E mais: como veremos, embora tenhamos a ABIN como seu elemento central, o fato é que hoje há muitas estruturas de inteligência espalhadas por diversos órgãos e entidades do Estado brasileiro – como polícias e Ministérios Públicos – com pouco controle e ampliação de atuação. Não à toa, escândalos recentes sobre algumas de suas práticas e questionamentos sobre seus limites também têm aumentado significativamente. Falaremos disso daqui a pouquinho.

Anna Venturini: Vale lembrar, Felipe, que as atividades da ABIN estão sujeitas a uma espécie de controle externo. Elas deveriam ser fiscalizadas pelo Congresso Nacional, que possui uma comissão mista de senadores e deputados para isso: a Comissão Mista de Controle da Atividade de Inteligência. Só que o Rafael nos contou que essa comissão atua muito raramente, em casos muito específicos, e está inoperante nos últimos anos.

Rafael Carpentieri: No congresso nacional nós temos uma comissão que é formada pela liderança da maioria, pela liderança da minoria. Ela sempre atuou no Brasil de forma reativa. Então, por exemplo, quando acontece algum escândalo de espionagem muito grande…A gente teve um caso, que foi a Operação Castelo de Areia, né, que foi anulada pelo STJ, que houve a prisão de um banqueiro. Aí se verificou na época que existia inclusive a contratação de uma empresa de nteligência internacional, a Crawl, que atuou naquela época, né? Então, isso despertou alguma reação no parlamento. Para você ter uma ideia, essa comissão passou anos desativada, sem indicação dos integrantes. Então, a hora que a coisa parecia que ia funcionar, a gente teve o impeachment. Isso desorganizou muito porque a ABIN volta toda para uma estrutura militar.

Anna Venturini: É, Felipe. E isso é bem sério, porque como contamos no nosso primeiro episódio, casos recentes mostram que fiscalização e controle desse tipo de atividade são essenciais para evitar a vigilância ilegítima e a violação de direitos. Recentemente, por exemplo, a ABIN se envolveu em um escândalo ao requisitar o compartilhamento de todo o banco de dados de 76 milhões de carteiras de motoristas custodiadas pelo Denatran, sem que fosse oferecida uma justificativa plausível para tanto. Afinal de contas, qual seria a finalidade do uso desses dados pessoais para atividades legítimas de inteligência, sem que seus titulares tivessem ciência desse uso adicional? O Paulo Rená comentou sobre esse caso.

Paulo Rená: E um outro caso, levado ao Supremo Tribunal Federal, problemático, foi a ideia de o Denatran, o departamento que lida com nossas carteiras de motorista, passar os nossos dados pra ABIN, a Agência Brasileira de Inteligência, ficando esses dados sob a gestão do Serpro. Assim, você aceita colocar os seus dados, pra você poder exercer sua liberdade de locomoção por um veículo automotor, e aí de repente esses dados vão parar no serviço de inteligência brasileira. É aquela ideia: “Olha, eu vou guardar todos esses dados aqui, nessa grande caixa, a hora que eu precisar, eu entro aqui e observo”. E isso gera um custo adicional pro Serpro, que teria que fazer todo um cuidado pra esses dados não serem utilizados por outra pessoa, e mesmo essa pessoa, que seria a destinatária “legítima” para essa finalidade, que é a ABIN, eu acho que extrapola em muito a finalidade e mesmo a razoabilidade desse tipo de dados.

Felipe de Paula: Outro caso recente que chamou a atenção sobre os limites das atividades de inteligência foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6529, proposta pela Rede Sustentabilidade e pelo PSB, perante o Supremo Tribunal Federal. Questionaram o que parecia ser um poder legal da ABIN de requisitar compulsoriamente informações sensíveis e dados sigilosos como sigilo fiscal, relatórios do COAF e sigilos telefônicos, por exemplo. Ao final, o STF decidiu que somente podem ser fornecidos dados e conhecimentos específicos à ABIN quando for comprovado o interesse público da medida, afastando qualquer possibilidade desses dados atenderem a interesses pessoais ou privados. Também exigiu a instauração de procedimentos formais e a existência de sistemas de segurança e registro de acesso, inclusive para efeito de responsabilização, em caso de eventuais omissões, desvios ou abusos. Ou seja: maior controle sobre a atividade. 

Anna Venturini: Mas como já adiantamos, Felipe, também precisamos considerar que a atividade de inteligência não é exclusividade da ABIN, ela também está presente em outras instituições estatais existentes no país. Vale lembrar que temos órgãos de inteligência nas polícias, no Ministério Público, no Ministério da Justiça e em muitos outros.

O Ministério Público do estado de São Paulo, por exemplo, possui o Núcleo de Inteligência e Gestão do Conhecimento, responsável por fornecer informações para apoiar as decisões do MP e também por ações de monitoramento, transparência, prevenção e repressão a ilícitos administrativos, civis e penais. A atuação do órgão é feita por meio da articulação de colaboradores, análise de dados, big data, inteligência artificial e aprendizado de máquina o machine learning.

Felipe de Paula: E, lembra que a gente falou que na ditadura os agentes do SNI se infiltravam em órgãos públicos e privados, nas escolas e nos sindicatos? Então, isso acontece até hoje não só com a Abin, como também nas polícias. O Rafael nos deu mais detalhes  sobre isso: 

José Rafael Carpentieri: Houve um movimento quando Celso Amorim era ministro da defesa. Teve um documento do exército que vazou, um documento que falava de inimigo interno. E aí então houve uma pressão, tentou-se reformular a doutrina, né? Mas com o impeachment da Dilma, isso parou e voltou a militarização da ABIN. Então, hoje, permanece essa ideia, né? E não só em relação à ABIN, se a gente pegar as polícias militares, eles têm agentes de inteligência que frequentam reuniões de professores, sindicatos… isso sempre foi feito desde sempre. Isso não parou com a constituição de 88.

Anna Venturini: Mais recentemente, essas infiltrações também aconteceram em algumas manifestações. O Pedro vai contar pra gente:

Pedro Ansel: Em 2019, a agência de dados Fiquem Sabendo teve acesso a documentos secretos da Polícia Federal. Esses papéis mostravam que agentes de segurança pública se infiltraram em reuniões de movimentos sociais e nos protestos em junho de 2013. 

Segundo os documentos, os nomes dos líderes dos movimentos sociais foram identificados, assim como dados dos cidadãos que participaram dos atos, comentários nas redes sociais e até os carros de cada um. 

Foi exposto também que os infiltrados se camuflaram nos grupos de “black blocks”, manifestantes em geral vestidos de preto e mascarados conhecidos por realizar ações  diretas nos protestos. E, apesar desse tipo de atuação das autoridades ser completamente invasiva e potencialmente violadora das liberdades de expressão e manifestação, a Polícia Federal respondeu aos jornais na época que “agiu legalmente e cumprindo seu trabalho”.   

Foi também em 2019 que o pacote anti crime do ministro Sérgio Moro estabeleceu legalmente a figura do agente policial disfarçado, cuja ação está situada entre a chamada campana policial e uma infiltração policial. Além do relativo grau de expertise, o agente disfarçado deve possuir habilidade para atuar descaracterizado de forma a permitir a coleta de provas de um crime e a investigação de sua autoria, sem interferir no curso causal da ação criminosa.

Felipe de Paula: E isso não acontece apenas no Brasil.  Com a justificativa do combate ao terrorismo, as agências de inteligência têm se infiltrado em protestos e manifestações populares por todo o mundo. O Rafael contou um caso que aconteceu na França em 2015.

José Rafael Carpentieri: Do prisma histórico, se a gente olhar, assim, do ponto de vista de quem governa, o maior inimigo de qualquer governante é a população, a própria população. Então a gente tem hoje mundialmente um sistema de monitoramento, de coleta de dados à margem da lei, que os estados levam isso como dispositivos de exceção. Então eles falam “nós estamos numa guerra, terrorismo”. Ou hoje fala-se muito na França da questão da emergência sanitária, né? Do estado de urgência sanitária. Então, mecanismos excepcionais, que vão pôr à margem os direitos fundamentais para justificar essa coleta massiva de dados. Isso em todos os países, todos os estados fazem isso usando essa desculpa do terrorismo, né? E tem um fato interessante, no final de 2015 teve os atentados de Paris, e duas semanas depois dos atentados de Paris tinha a COP-21, a conferência do clima. E por conta dos atentados a França decretou estada de urgência, que é uma espécie de estado de sitio que foi criada na época da guerra da Argélia, que é um estado de sitio por decreto, não passa pelo sistema constitucional francês. Então eles decretaram estado de urgência e aí você tinha, por exemplo, a possibilidade de mandado de prisão emitido pelo prefeito de polícia. Prefeito de polícia seria uma espécie de um governador departamental aqui. Então você tinha prisões administrativas que não poderiam ser revistas por habeas corpus. Escutas ilegais, monitoramentos ilegais dentro dessa medida de urgência. E eles usaram esses mecanismos que foram decretados por conta dos atentados para prender os líderes dos movimentos ambientais que iriam realizar protestos por conta da conferência do clima em Paris.

Anna Venturini: Além da vigilância de protestos, também temos visto casos de monitoramento de funcionários públicos e professores universitários que se manifestam contrariamente ao governo. 

Um caso recente é o da Seopi, a secretaria de Operações Integradas, que é um órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e que tem como foco de atuação a integração das forças policiais brasileiras no combate ao crime organizado, a lavagem de dinheiro, a sonegação de impostos, o contrabando e  o monitoramento de fronteiras. A Seopi foi criada em janeiro de 2019 pelo ex-ministro Sérgio Moro. 

“A nossa secretaria é uma secretaria nova que foi criada esse ano pelo ministro da Justiça e Segurança Pública Dr. Moro, ela tem duas diretorias, uma diretoria de operações e uma diretoria de inteligência (…) Nós já estamos em 11 estados do Brasil trabalhando com essa operação”

Felipe de Paula: Em julho de 2020, a Seopi foi acusada de ter monitorado dados pessoais de 579 servidores públicos federais, estaduais e professores universitários listados como antifascistas e críticos ao governo Jair Bolsonaro. 

Anna Venturini: A Seopi teria produzido um dossiê com nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas e depois distribuído um relatório às administrações públicas federal e estaduais.

Felipe de Paula: A Rede de Sustentabilidade ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal para questionar as investigações sigilosas conduzidas pela Seopi. 

Em resposta, a Ministra Cármen Lúcia concedeu uma medida em caráter de urgência para suspender a atuação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, classificando como “abuso da máquina estatal” o recolhimento de informações “de servidores com postura política  contrária ao governo”. 

Anna Venturini: Só que, Felipe, essa atividade não faz parte da competência legal da Seopi. E, apesar da decisão da Carmen Lúcia proibindo a elaboração de dossiês sobre pessoas críticas e opositoras ao governo, as autoridades estatais não deixaram de aplicar  tecnologias de segurança que são tidas como verdadeiras ameaças à liberdade, à privacidade e muitos outros direitos fundamentais garantidos pela Constituição de 1988 e por tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Felipe de Paula: No início de 2021, a imprensa revelou que o governo federal e o Ministério da Justiça pretendiam adquirir o chamado Pegasus, um aparelho espião desenvolvido por uma empresa israelense. A notícia desencadeou uma crise no governo, já que a compra não teria contado com a participação do Gabinete de Segurança Institucional nem da Agência Brasileira de Espionagem. 

Anna Venturini: Descoberto em 2016, o Pegasus é um spyware — uma tecnologia de espionagem vendida para supostamente coibir a ação de criminosos e terroristas. Só que nos últimos anos, governos de países como México, Índia e Arábia Saudita foram pegos utilizando a tecnologia para invadir celulares e monitorar conversas de opositores políticos. 

Felipe de Paula: O Paulo Rená falou sobre os riscos ligados à utilização do Pegasus: 

Paulo Rená: A primeira coisa que a gente tem que pensar com relação a esse tipo de software, né, é que talvez o Estado devesse ser o primeiro a questionar a existência desse tipo de ferramenta, e não o contrário, da gente ficar preocupado de o Estado estar utilizando aí, no caso, a ferramenta Pegasus, criada lá por uma empresa israelense. Não é só um programa de computador, é um programa, um equipamento, que tem a capacidade de invadir, de acessar indevidamente, um telefone celular à distância, sem que a pessoa perceba, e captar absolutamente tudo o que tiver no aparelho. E aí, enfim, medidas como criptografia de ponta a ponta não resistem, porque o Pegasus teria capacidade de, sorrateiramente, pegar o seu histórico de conversa, em seus mensageiros, né, Telegram, WhatsApp, geolocalização, por onde você passou, o tempo em que você ficou em cada lugar, né, sons e imagens do ambiente, ativando seu microfone e a sua câmera sem você descobrir, né. E a ideia é assim, ele não pega na transmissão dos dados entre os sistemas. Se a pessoa pode ler o que está na tela, esse programa também poderia ler. E enfim, a gente, nessa situação, fica esperando, né, que Apple, a Samsung, Motorola ou o Google, com o Android, consigam oferecer algum tipo de proteção, né, por entender quais são essas fragilidades que estão sendo exploradas, e construir algum tipo de proteção para os aparelhos, e para os programas de computador que não deixam rastro pra esse tipo de monitoramento, enfim. Acho que a gente tem sim que ficar preocupado, mas é o tipo de programa que lembra né… um outro aspecto que eu acho importante exemplificar, porque maridos abusivos tem também se utilizado desse tipo de expediente, para poder, enfim, monitorar o que suas esposas fazem. Então, imagine o Estado lidando com as pessoas como se fosse um cônjuge que não tem confiança, né? Eu acho que é muito problemático a gente estabelecer esse tipo de relação. 

Anna Venturini: E, Felipe, o Pegasus não é a primeira tecnologia de vigilância adquirida no Brasil que gera controvérsias. Outra ferramenta utilizada no país é o Guardião, um sistema de interceptação telefônica e de dados da empresa nacional Dígitro. 

Felipe de Paula: Bem lembrado! Em 2007, por conta dos Jogos Pan-Americanos, a extinta Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro adquiriu o sistema de interceptação telefônica Guardião. Esse sistema permitiria o desvio e o acesso a todos os dados que são gerados por voz a partir de um terminal telefônico, é o que corriqueiramente se chama de “escuta telefônica”.

Depois do Pan, o sistema foi adquirido por diversas superintendências da Polícia Federal e pelo Ministério Público de alguns estados para ser utilizado principalmente em operações de combate à corrupção.  

Anna Venturini: O Rafael também falou como o uso desse tipo de ferramenta anda cada vez mais popular e sobre como elas podem afetar a liberdade de ser quem somos e de nos expressar sem medo de represálias. 

José Rafael Carpentieri: Esses equipamentos, eles são adquiridos corriqueiramente. Tem várias versões, tem alguns que são fabricados no Brasil, inclusive, e são feitos com processos de dispensa de licitação. Então é difícil você controlar isso no âmbito do tribunal de contas, por exemplo. Mas o controle, em tese, deve ser feito pelo poder legislativo. Só que isso nunca foi feito no Brasil. E o risco? Bom, aparentemente é um risco político, de perseguição política, né? Existem outras implicações também em relação aos direitos fundamentais. A privacidade é uma coisa essencial para a gente construir nossa própria personalidade. Se você sabe que você está sendo vigiado o tempo todo, você não vai poder ser você. Ser quem você é ou quem você quer ser. Então essa é a essência da privacidade. Quando você não tem privacidade, você não tem um direito fundamental. Então isso afeta o exercício de liberdade da pessoa. Então esse é o risco de existir o monitoramento por si só. 

Felipe de Paula: Mas, Anna, agora fica a pergunta: o que pode ser feito para coibir o uso indevido ou fora dos limites legais de tecnologias de vigilância como estas? 

Anna Venturini: O Paulo Rená destacou que, para que a proteção dos dados pessoais seja efetiva, nós precisamos de regras, de sistemas e de uma cultura. A Lei Geral de Proteção de Dados já representou um avanço nesse tema, pois ela traz os mecanismos e as regras. O próximo passo é criar uma cultura de proteção de dados pessoais e torná-la cada vez mais robusta. 

Paulo Rená: É importante primeiro a gente entender que a LGPD, ela vai além do marco civil, e ela não trata só da internet, nem trata só de dados digitais. Então, quando a gente fala em proteção de dados, a gente não fala só do que as redes sociais, os sites, o WhatsApp, usam das pessoas, também Waze, Uber, etc. A gente está falando também de cartão de crédito, telefônica, redes de postos de gasolina, de farmácias, de seguros de saúde, de seguros de maneira geral, que podem traçar um perfil do cidadão através dos seus dados. Aí a gente tem um universo dentro do escopo de uma proteção de dados pessoais. Então, eu acho que, de maneira geral, no setor privado a gente teve sim uma vitória, justamente naquela ideia de um tripé: de que para a proteção de dados ser eficiente, a gente precisa de regras, de mecanismos, né, de sistemas e de uma cultura. Eu acho que a gente não tem uma cultura, e a gente não tinha mecanismos. E a lei veio para dar ignição a esse processo. Acho que muitas empresas estão bastante preocupadas em construir seus mecanismos, construir os seus sistemas. Eles já estão prontos? Com certeza que não. Eles já estão funcionando plenamente? Eu apostaria aí muitos Bitcoins que não. Mas a nossa cultura está mudando, então as pessoas, olhando pra internet, quando tem uma novidade sobre o Facebook, sobre qualquer serviço, mais famoso, menos famoso, as pessoas trazem essa preocupação no senso comum. Ainda que sem dominar, né, as definições legais, as pessoas já começam a pensar sobre isso. Acho que já fica mais fácil explicar pra minha mãe porque que eu perco tanto tempo estudando e lendo sobre essas coisas, por exemplo. 

Felipe de Paula: E, pensando nas atividades estatais e na coleta de dados, o Paulo contou que a Lei Geral de Proteção de Dados também permite uma cobrança do Estado. 

Paulo Rená: E aí, olhando pro poder público, eu acho que a gente tem um ganho, ainda no plano teórico, em que a gente consegue fazer essa cobrança por parte do Estado, a própria autoridade nacional de proteção de dados levou aí quase dois anos, né, desde que estava vigente o trecho da lei que já previa sua existência em 2018, foi só no final de 2020 que ela foi organizada, e só agora que ela começa a funcionar, com um atraso evidente, mas é um ganho. Vai levar um tempo, claro, pra essa norma poder alcançar toda a sua eficácia. O direito, também, ele é dever ser, ele não é uma descrição da realidade, ele é um compromisso que a sociedade faz com ela mesma, pra ela ir no caminho de uma melhoria. Como eu disse, na Europa, nos Estados Unidos, esses debates tão positivados, né, enormes, já há 50 anos, o Brasil tá chegando atrasado nessa questão, mas a gente vem caminhando. 

Anna Venturini: Outro ponto destacado pelo Paulo Rená é o controle judicial em todos os casos que envolvam quebra de sigilo das pessoas para investigação de supostos crimes, de modo a reduzir a possibilidade de abusos. 

Paulo Rená: Acho que qualquer técnica em que o Estado vá acessar aparelhos das pessoas, mesmo que seja para atividade de inteligência legítima, tem que contar com um controle judicial muito estrito. A gente tem essa ideia de pesos e contrapesos, não tem dez anos, tem séculos, justamente pra limpar a possibilidade de abusos. Então, se a polícia, se agências de inteligência têm um suspeito de um crime específico e quer saber se aquela pessoa está mesmo envolvida naquele crime, vá até o juiz, o juiz vai autorizar o mandado, e aí você desenvolva uma ferramenta, o Estado tenha uma ferramenta possível para acessar aquele dispositivo. É possível fazer grampo telefônico, do ponto de vista legal, talvez também devesse ser possível algum tipo de grampo do ponto de vista eletrônico, acho que é razoável, mas não que seja uma contratação por uma empresa privada, que o agente público possa ligar e desligar essa chave, sem um controle judicial, sem uma autorização prévia, que permita a supervisão pra saber se teve abuso ou se não teve abuso. Então a ideia é que isso passe primeiro pelo congresso, que haja uma revisão do nosso arcabouço jurídico, para ter um protocolo para como isso vai ser feito, e em cada situação prática, o executivo recorra ao judiciário, que não só autorize, como faça a supervisão desse tipo de expediente. 

Felipe de Paula: Anna, acho que a gente pode resumir que é preciso discutir com a transparência necessária qual o papel e quais os limites das atividades de inteligência em um regime democrático, em qualquer âmbito federativo. 

Como? Jogando luz a essas atividades e sabendo o que de fato pode ou não pode ser feito. Assim a gente afasta, minimamente, o risco de vigilância ilegítima, em prol do detentor do poder de plantão, ou que ataca grupos dissidentes que pura e simplesmente exercem sua liberdade de expressão, de manifestação e de crítica. 

Anna Venturini: Ou seja, Felipe, ainda temos um longo caminho pela frente. As atividades de inteligência estatal são essenciais para garantir a segurança do país, a integridade das fronteiras e combater ameaças e violências. 

No entanto, a ideia de vigiar os próprios cidadãos, os supostos inimigos internos,  muitas vezes esbarra nos direitos fundamentais garantidos pela Constituição, como a privacidade. É fundamental que as atividades de inteligência sejam alvo de maior controle  —  seja pelo Legislativo, seja pelo Judiciário  —  de modo que a garantir que dados pessoais sejam protegidos e usados apenas para fins legítimos e justificáveis. 

Felipe de Paula: A gente já tá chegando ao fim deste episódio do Revoar, e assim como nas outras temporadas, a gente vai dar dicas de filmes e livros pra você continuar refletindo sobre o assunto. 

A Luisa Plastino perguntou aos nossos convidados sobre isso. Primeiro, as dicas do José Rafael Carpentieri:

José Rafael Carpentieri: Eu gostaria de deixar como sugestão pro pessoal que está nos acompanhando, três obras que eu acho interessante e que tratam do nosso tema. Uma série que se chama West World, ela passa na HBO e ela mostra como que a informação é importante para a constituição da subjetividade. Também, o documentário que ganhou o Oscar, ele se chama Citizenfour e conta a saga do Edward Snowden. E também as entrevistas com o Vladmir Putin feitas pelo cineasta Oliver Stone. Há um trecho importante onde é abordada a questão do uso da inteligência na eleição norte-americana que teve como vitorioso o candidato Donald Trump.

Anna Venturini:  O Paulo Rená também trouxe algumas dicas:

Paulo Rená: Eu vou recorrer a um clássico, né, na verdade, que acho que combina perfeitamente com a nossa temática, que é o George Orwell, em 1984, que além de um livro, ele gerou também alguns filmes. Então você tem um filme de 56, você tem um filme que foi feito em 1984, você tem outros filmes que são baseados nele, tem um que chama Brazil, o Filme, que é uma espécie de adaptação dirigida pelo Terry Gillian, diretor bastante famoso, mas acho que antes de tudo, recomendo mesmo ler o livro, 1984, que tem essa edição da Companhia das Letras, que além de muito bonita, traz uma compilação de várias capas do livro, várias edições mundo afora e alguns artigos reflexivos a partir da obra original, que vão olhar do ponto de vista sociológico, jurídico, imagético, tecnológico. É um convite, assim, para reflexão sobre todos esses perigos, acho que da forma mais interessante possível. E quem for se interessando, tem uma toca do coelho aí, para você se aprofundar e se divertir bastante. 

Felipe de Paula: E a Luisa também tem dicas pra dar aqui no Revoar. 

Luisa Plastino: Bom, como hoje falamos bastante sobre “inimigos internos” e o papel da ditadura militar brasileira na arquitetura dos sistemas de inteligência e de policiamento do Estado, quero indicar um dos livros mais marcantes que já li sobre o tema: “K, relato de uma busca”, do jornalista e professor Bernardo Kucinski. Como ele mesmo anuncia: “tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. 

Afinal, a história é baseada no sequestro de sua irmã, a professora de química da USP Ana Rosa Kucinski, e de seu cunhado Wilson Silva em abril de 1974. A narrativa é construída a partir dos passos do sr. K, um imigrante judeu e comerciante no Bom Retiro que sai a procura de sua filha desaparecida e se depara com um labirinto de informações, pistas falsas e obstáculos para alcançar a verdade. Vale muito a leitura! 

Felipe de Paula: Esse foi o quinto episódio da terceira temporada do Revoar, o seu podcast sobre liberdade e autoritarismo. 

Anna Venturini: Nosso papo da semana que vem será sobre vigilantismo, milícias e linchamentos. Nossos convidados serão Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo; e Camila Asano, diretora de programas da Conectas.  

Felipe de Paula: Você também pode acompanhar o Revoar pelo Instagram, em @revoar.podcast, e pelas redes sociais do LAUT. 

As referências dos áudios que a gente usou nesse programa tão na página do Revoar, no site do LAUT, em laut.org.br/revoar. 

Anna Venturini: O Revoar é uma produção da Rádio Novelo para o LAUT – o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.

A coordenação é da Paula Scarpin e da Clara Rellstab. A produção é da Clara Rellstab, e a edição é da Claudia Holanda. A pesquisa para este podcast é do Pedro Ansel e da Luisa Plastino, que também participam das entrevistas. A música original é da Mari Romano, e a finalização e a mixagem do programa são do João Jabace. A coordenação digital é da Iara Crepaldi, da Andressa Maciel e da Bia Ribeiro, que também faz a distribuição.

Fiquem bem. E até semana que vem.

Felipe de Paula: Nos vemos na próxima revoada. Até lá!

Pode soar como teoria da conspiração, mas o ‘Estado espião’ é uma realidade. Todos os países possuem sistemas de inteligência que buscam identificar ameaças externas e internas. Os EUA têm a Agência Central de Inteligência (CIA); o Brasil, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).  

O problema é que, sob o argumento de garantir a estabilização da ordem e de manutenção da paz, o Estado acaba elegendo inimigos externos e internos. Vigia, controla e pune, nem sempre de maneira legítima, quem o ameaça. Um exemplo dessa atuação ilegítima é o recente uso da Lei de Segurança Nacional (LSN) para prender pessoas que se manifestaram contra o governo federal. 

A LSN faz parte da herança  da caótica ordem jurídica brasileira resultante da ditadura militar – chamada de ‘entulho democrático’ pela oposição ao então presidente militar João Baptista Figueiredo em 1979. Naquela época, existia o  Serviço Nacional de Informações (SNI) que, sob o pretexto de coordenar atividades para a segurança nacional, funcionava como um órgão de espionagem e repressão da ditadura. 

Hoje, quase quatro décadas depois, vemos, na prática, a ABIN sendo controlada pelos militares novamente. O cenário da segurança nacional é composto por muitas estruturas de inteligência espalhadas por diversos órgãos e entidades estatais. Há pouco controle e ampliação notável de atuação da ABIN.

Não à toa, têm aumentado, significativamente, os escândalos sobre suas práticas e também os questionamentos sobre seus limites. Uma polêmica recente ocorreu após a notícia da intenção de compra do aparelho espião Pegasus pelo governo federal e Ministério da Justiça. Conforme revelou um consórcio de jornalistas independentes, o software era usado, em mais de 40 países, para hackear smartphones de pessoas e organizações contrárias a governos autoritários, incluindo o celular do presidente francês, Emmanuel Macron, e de outros 13 chefes de Estado.  

Mas o que pode ser feito para que o uso indevido de tecnologias de vigilância como essas seja coibido? Como funciona a inteligência estatal? De que modo o legado autoritário da ditadura se conserva? Como desenvolver a proteção de dados pessoais? 

Para refletir sobre essas questões, Anna Carolina Venturini e Felipe de Paula entrevistam Paulo Rená, ativista e fundador do Instituto Beta: Internet & Democracia; e José Rafael Carpentieri, doutor em Direito Político e Econômico e professor-pesquisador convidado na Universidade Aix-Marseille (Aix-Marseille Université, em Provença, na França).

A conversa aponta ser fundamental que as atividades de inteligência sejam alvo de maior controle  —  pelo Legislativo e Judiciário  —  para garantir que dados pessoais sejam protegidos e usados apenas para fins legítimos e justificáveis. 

Ao jogar luz sobre essas atividades e saber o que de fato pode ou não ser feito, afastamos, minimamente, o risco da vigilância ilegítima. 

Aprofunde-se no tema

Ao final do episódio, nossos apresentadores e convidados indicam livros, filmes, documentários e artigos que colaboram para o aprofundamento do tema discutido. Confira:

José Rafael Carpentieri indica:

 Paulo Rená recomenda: 

  • O livro ‘1984’, de George Orwell.
  • O filme ‘Brazil, O filme’, dirigido por Terry Gilliam. 

Luisa Plastino sugere:

Áudios utilizados no episódio 05

  • Trecho de vídeo ‘Seopi destaca suas principais ações em 2019’,

do canal MInistério da Justiça e Segurança pública.

O Revoar é publicado semanalmente, às quintas-feiras, sempre no começo do dia. A temporada Vigilância, vigilantismo e democracia é apresentada por Anna Carolina Ribeiro e Felipe de Paula, com produção da Rádio Novelo.

Para falar diretamente com a equipe, escreva para revoar@laut.org.br.

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Convidados do episódio
Paulo Rená

Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília; professor e pesquisador no Centro Universitário de Brasília; ativista e fundador do Instituto Beta: Internet & Democracia, ONG integrante da Coalizão Direitos na Rede. Foi gestor do processo de elaboração coletiva do anteprojeto de lei do Marco Civil da Internet, na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.

José Rafael Carpentieri

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mestrado em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba e doutorado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bolsista da CAPES, nas modalidades CAPES PROSUP e CAPES PDSE (Programa de Doutorado-sanduíche no Exterior), também é professor-pesquisador convidado na Aix-Marseille Université.  

Ficha técnica

O podcast é uma produção da Rádio Novelo para o LAUT
Apresentação: Anna Venturini e Felipe de Paula
Coordenação geral: Clara Rellstab
Roteiro: Anna Venturini, Felipe de Paula, Luisa Plastino e Pedro Ansel
Tratamento de roteiro: Clara Rellstab
Pesquisa: Pedro Ansel e Luisa Plastino
Edição e montagem: Claudia Holanda e Julia Matos
Finalização e mixagem: João Jabace
Engenheiro de som: Gabriel Nascimbeni (Estúdio Trampolim)
Música original: Mari Romano
Identidade visual: Sergio Berkenbrock dos Santos
Coordenação digital: Iara Crepaldi e Bia Ribeiro

Redes sociais: Andressa Maciel e Iara Crepaldi

Para falar com a equipe: revoar@laut.org.br